Tu não és um anjo

O que lhe responder? Nada, claro. Via-se perfeitamente que era um homem casado, a aliança brilhava como néon na mão esquerda, que usou para ajeitar os óculos.

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Vários anos depois, os olhos postos num homem. Surgido numa reunião de Zoom, em que manteve a câmara do dispositivo desligada a maior parte do tempo, por reserva ou timidez, não sabe dizer, ali estava, aparecendo pontualmente no ecrã — um homem jovem, talvez com uns 30 e poucos anos, atraente.

Nunca se percebe bem o que nos faz olhar para uma pessoa e não para outra. As características físicas são importantes, claro – quem disser que não, mente –, mas não é só isso. Olhamos para uma pessoa e percebemos, às vezes instintivamente, que há ali qualquer coisa que nos conquista sem esforço e que nos dá uma vontade inexplicável de ir investigar. Ali estava, no ecrã, um homem ligeiramente despenteado, voz grave e cava, olhar meigo sob uns óculos de massa pouco graduados.

Quase não trocaram palavra durante a reunião, mas assim que terminou o encontro profissional, o anúncio de mensagem soou no telemóvel dela: “Maldita a hora. Lixaste-me bem.” Não soube o que responder, mas percebeu imediatamente que tinha sido apanhada. Ele também a vira. Não respondeu, começou a fazer o jantar: puré de batata com bife grelhado. Ouviu Johnny, tu n’est pas un ange, da Édith Piaf, e pensou como a vida da cantora tinha sido trágica. Teve pena dela, enquanto comia uma maçã das rijas e cheia de sumo, e olhava para as silhuetas das árvores no quintal, onde nunca chegara a investir na iluminação. Seja como for, estava de partida daquela casa, já não valia a pena investir. Gostava da escuridão do quintal, dava para ver o céu e as estrelas, visão rara quando se vive no centro da cidade.

O que lhe responder? Nada, claro. Via-se perfeitamente que era um homem casado, a aliança brilhava como néon na mão esquerda, que usou para ajeitar os óculos. Provavelmente canhoto. Séculos antes seria considerado bruxo, neste século é considerado apenas um homem casado, com quem não se deve meter sob pena de arranjar chatices a sério. Não queria chatices. Em 40 anos já tinha tido a sua dose.

Depois do jantar, bebeu um copo de vinho branco. Fumou um cigarro, leu mais um dos duros capítulos do mais recente livro de uma autora mistério napolitana. Sentiu-se bem. Ligou para um amigo. Sabia que a desejava há muito. Pediu-lhe para ir até sua casa. Há anos que não ia para a cama com um homem. Tinha, finalmente, vontade.

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