Se o Rei emérito vier para Portugal

Das muitas e boas razões que João Carlos I possa ter para regressar a Cascais, a de fugir à justiça não será a mais inteligente.

Onde está o Rei emérito João Carlos I? – um problema político e judicial de Espanha, por razões mais que óbvias. Cá deste lado da península, com a mania de dramatizarmos as coisas banais, bastou a possibilidade de vir morar para Cascais para nos tirar do sossego. Da pitoresca afirmação de D. Duarte Pio – seria bom para o turismo – ao embaraço do Presidente Marcelo – eu intervir nisso? Que disparate! –, parece que temos assunto para o Verão todo.

A ideia – já presente nas cabeças pouco informadas – que Cascais é um bom sítio para alguém se exilar e esconder da justiça espanhola é que parece um valente disparate. Na carta em que comunicou a decisão de sair de Espanha, o Rei emérito nunca falou em exílio, nem é provável que pudesse beneficiar desse estatuto, reservado para pessoas perseguidas por razões políticas, religiosas, sociais e culturais. Como qualquer cidadão da União Europeia, se for essa a sua escolha, tem direito a circular e residir em Portugal, nos termos previstos na Lei 37/2006, que transpôs a Directiva 2004/38/CE. Por outro lado, por força das regras de cooperação judiciária na União Europeia, qualquer decisão da justiça espanhola que o afecte será facilmente executável em Portugal. Portanto, das muitas e boas razões que João Carlos I possa ter para regressar a Cascais, a de fugir à justiça não será a mais inteligente.

Qual é, afinal, o estatuto jurídico do Rei emérito? O artigo 56.º, n.º 3 da Constituição espanhola atribui imunidade absoluta, tanto para actos públicos como privados, apenas ao Rei em exercício: “a pessoa do Rei é inviolável e não está sujeita a responsabilidade.” Para a situação de abdicação ao trono não estava previsto na lei qualquer estatuto especial. Porém, dias antes da aprovação da Lei Orgânica 3/2014, de 18 de junho, que declarou a abdicação de João Carlos I, foram introduzidas duas alterações legais que passaram a definir o seu estatuto especial: a primeira, no Decreto Real sobre títulos, honras e tratamento da família real, permitiu que continue a usar, com carácter honorífico, o título de Rei, o tratamento de Majestade e as honras correspondentes; a segunda, na Lei Orgânica do Poder Judicial, concedeu-lhe foro especial, pelo que, já não beneficiando da imunidade constitucional, pode ser investigado e julgado por acções civis e criminais, mas apenas perante o Tribunal Supremo.

Na investigação criminal em curso, relacionada com suspeitas de branqueamento de capitais e crimes fiscais e com a alegada doação de dinheiro a uma cidadã da Suíça, proveniente de comissões recebidas pela adjudicação a uma empresa espanhola de uma obra pública de construção ferroviária na Arábia Saudita, o Ministério Público entendeu que João Carlos I perdeu a imunidade quando abdicou do trono, mas que o princípio da irretroactividade da lei penal apenas permitirá a sua eventual responsabilização por actos praticados em momento posterior a essa abdicação. Todavia, esse é manifestamente um problema de Espanha e das suas autoridades judiciais.

Em Portugal, João Carlos I, que deixou de ser chefe de Estado de Espanha, não goza de prerrogativas de protecção especiais, designadamente as concedidas pela Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas. Para além do eventual tratamento protocolar devido às altas entidades de Estados estrangeiros (Lei 40/2006), não conheço lei que conceda imunidade a ex-Presidentes ou Reis eméritos. Se, no âmbito do processo em curso ou de outro, as autoridades judiciais espanholas solicitarem a entrega de João Carlos I para procedimento criminal ou cumprimento de pena, dispõem do mecanismo do mandado de detenção europeu (Lei 65/2003), que permite, de acordo com as especificidades do caso, a entrega, sob detenção, de cidadãos à justiça dos países da União Europeia, por decisão da autoridade judiciária do país em que se encontre – que no caso, se for Portugal, será o Tribunal da Relação territorialmente competente.

Em conclusão, moralmente, pode-se gostar mais ou menos da saída do Rei emérito de Espanha e da possibilidade de fixar residência em Portugal. Mas não há nenhuma ilegalidade nisso. Se vier, está no seu direito. O que tem é de ficar sujeito à nossa lei, sem privilégios informais, como qualquer outra pessoa.

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