Presidente do Mali nomeia novo Tribunal Constitucional para salvar a pele

Há semanas que milhares de malianos protestam nas ruas contra Ibrahim Boubacar Keita. Num gesto de reconciliação, o chefe de Estado nomeou novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mas a crise não parece ter fim à vista.

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O Presidente do Mali, Ibrahim Boubacar Keita HAYOUNG JEON/LUSA

O Tribunal Constitucional do Mali está no centro de uma crise política que levou milhares de pessoas para as ruas em contestação ao Presidente, Ibrahim Boubacar Keita. Para tentar acalmar a situação, o chefe de Estado nomeou na sexta-feira novos juízes para o órgão judicial. Os magistrados tomaram posse esta segunda-feira, mas os protestos não dão sinais de acalmar. 

O Mali teve eleições legislativas entre Março e Abril (realizam-se a duas voltas no país africano) e a vitória foi atribuída ao partido da União para o Mali, do Presidente Keita, sem que tenha conseguido a maioria absoluta necessária para governar sem o apoio de outras forças políticas. Nessa situação, o chefe de Estado contestou a eleição de 31 deputados da oposição, obrigando o Tribunal Constitucional, por si dominado, a pronunciar-se. 

O Tribunal Constitucional deliberou, em Abril, que os 31 deputados teriam de abandonar o cargo e que deveriam ser convocadas novas eleições para os esses círculos eleitorais que os elegeram. Mas os deputados da oposição, integrados numa aliança alargada chamada Movimento 5 de Junho-União de Forças Patrióticas, encararam a decisão como golpe do Presidente, acusaram os juízes de estarem ao serviço dos interesses do chefe de Estado e recusaram abdicar do assento parlamentar. 

A situação continuou a degradar-se num país onde a frágil situação económica, a corrupção endémica e a guerra contra grupos armados são as principais preocupações. Seguiram-se protestos nas ruas em Bamako, capital do Mali, a exigir a demissão de Keita e, no início deste mês, a contestação evoluiu para episódios de violência entre manifestantes e as forças de segurança, causando 11 mortos, segundo a Al-Jazeera. O edifício do Parlamento foi atacado, a rádio pública invadida e foram bloqueadas pontes e outras vias de acesso. 

Com a crise a avolumar-se, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEEAO) entrou em cena para tentar mediar uma solução política. Sugeriu a formação de um governo de unidade nacional que incluísse a oposição e a nomeação de novos juízes para o Tribunal Constitucional, cuja primeira tarefa seria resolver a disputa eleitoral. 

Para acalmar a oposição e mostrar abertura à CEEAO, Keita aceitou nomear novos juízes – seis homens e três mulheres. Mas, na tomada de posse, estes juraram que seriam juízes “merecedores e leais”, levantando dúvidas sobre a quem era dirigida mensagem, se ao órgão judicial ou ao Presidente. Três juízes nomeados por Keita, outros três pelo presidente do Parlamento, apoiante do chefe de Estado, os restantes três foram escolhidos pelo conselho judicial. 

Além disso, informa a rádio francesa RFI, o novo presidente do Tribunal Constitucional é Amadou Touré, antigo chefe de gabinete de Keita. Por isso, muitas são as dúvidas sobre a independência de um dos mais importantes órgãos judiciais do Mali. 

Apelo ao fim dos protestos

Mas isso não impediu que os juízes tomassem posse esta segunda-feira. Goodluck E. Jonathan, antigo Presidente da Nigéria e actual responsável pela mediação em nome da CEEAO, marcou presença e celebrou o momento como um “importante passo” para a resolução da crise política. Contudo, pouco depois, apelou ao fim dos protestos, que não pararam, dizendo que estes não “resolvem os problemas”. 

“Encorajar mais manifestações é apenas expor os jovens a riscos maiores”, disse Jonathan, em conferência de imprensa, na capital do Mali. “Pessoas podem morrer no processo”. 

A oposição sempre rejeitou as propostas da CEEAO e a composição do novo Tribunal Constitucional, novamente dominado por partidários do Presidente, apenas veio confirmar as suas críticas, prometendo continuar a ir para as ruas protestar. Prevê-se que as manifestações continuem ao longo desta semana, já que os manifestantes dizem não que não aceitam menos que a demissão do Presidente. 

“Isto [nomeações para o tribunal] apenas vai enfurecer ainda mais a oposição, pois três juízes foram nomeados pelo presidente do parlamento do Mali, que sob as recomendações da CEEAO já se devia ter demitido”, explicou Andrew Lebovich, especialista do Sahel do European Council on Foreign Relations, citado pela RFI. “Não acho que estas nomeações vão despolitizar o tribunal, seja na prática ou aos olhos do M5-RFP”.

Demasiadas crises 

Os chefes de Estado da CEEAO temem que o aprofundar da crise política fragilize ainda mais a situação interna no Mali, que tem mais de 20 milhões de habitantes e vários grupos armados –​ com destaque para os jihadistas – a actuar no seu território. A presente instabilidade política pode ser explorada por estes grupos para consolidarem as suas posições e, assim, contestarem a frágil autoridade do Estado. 

Desde 2012 que o Mali está mergulhado num conflito militar que já causou mais de quatro mil mortos nos últimos três anos, de acordo com as Nações Unidas. À rebelião tuaregue no Norte do país, seguiu-se um golpe de Estado, que depôs o então Presidente Amadou Toumani Touré. Realizaram-se eleições presidenciais, vencidas por Keita, e, na fase final do conflito, os jihadistas implantaram-se no Norte do país e começaram a combater as forças do Governo. 

Seguiu-se a intervenção de forças militares francesas, com o objectivo de travar os jihadistas, mas essa presença tem-se mostrado ineficaz na normalização da situação, diz a Al-Jazeera. Os ataques dos grupos armados aumentaram quatro vezes entre 2016 e 2020 e há milhares de refugiados internos, com a grande maioria a viver em grande miséria.

Há também relatos de assassínios extrajudiciais às mãos das forças do Governo, o que levou a uma crescente desconfiança entre a população, criando, a par da miséria vivida, um terreno fértil para o recrutamento dos grupos armados

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