Digam tudo, mas não que faltam médicos

O que faz falta ao SNS são recursos humanos, não médicos, que aliviem os médicos de realizar as atividades que não são do seu foro.

Não há falta de médicos em Portugal. De facto, a seguir à Grécia e à Áustria, somos o país com maior quantidade de médicos por número de habitantes, entre os 36 da OCDE. E ocupamos o terceiro lugar, apenas atrás da Irlanda e da Dinamarca, em volume de médicos formados, por ano e por número de habitantes. (Ver: Recent Trends in International Migration of Doctors, Nurses and Medical Students, OECD Publishing, 2019, Paris.) Contudo, esta insofismável realidade é frequente e erradamente desmentida por um grande número de atores.

São vários os interesses que se unem para incutir um conceito incorreto na sociedade. E parecem estar a conseguir fazê-lo com alguma eficácia. Prova disso tem sido o paulatino, mas constante, aumento do número de novos médicos, que ultrapassa largamente a capacidade, reconhecida pelo Ministério da Saúde, que os serviços de saúde têm para receber todos aqueles que se propõem iniciar um internato para obter uma especialidade.

A putativa falta de médicos tem sido sempre apontada ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), que tem, hoje, vários problemas que importa solucionar, mas nenhum deles é a falta de médicos, como nos querem tentar convencer.

O trabalho médico é objeto de um apertado controlo dos atos clínicos. As autoridades de saúde procuram, assim, uniformizar os registos e os tempos de cada consulta e de outras atividades médicas. A estas exigências associam-se as crescentes tarefas burocráticas incorporadas – agendamentos, marcações, acessos, etc. – que deveriam ser executadas, como eram ainda há poucos anos, pelas equipas administrativas.

Os médicos, em Portugal, também realizam múltiplas tarefas e atos que, em muitos outros países que nos são semelhantes, estão atribuídos ao pessoal de enfermagem. Se têm de realizar trabalho a que deviam ser alheios, não estão disponíveis para a sua verdadeira atividade clínica. Estas disfuncionalidades ocorrem porque o salário médico no SNS é irrisório e, por isso, paradoxalmente, torna-se financeiramente vantajoso que essas funções, de outros profissionais de saúde, sejam desempenhadas por médicos, considerando que, ao suprimir vários passos nas ‘cadeias de produção’ assistencial, reduzem-se erros e redundâncias.

O que faz falta, então, ao SNS são recursos humanos, não médicos, que aliviem os médicos de realizar as atividades que não são do seu foro. Mas, acima de tudo, faz falta liderança e organização. No que aos médicos se refere, falo da restituição do respeito técnico-científico e do empoderamento profissional que merecem e que se deve traduzir, sobretudo, na reposição e consolidação das carreiras médicas. É que a qualidade da prestação dos cuidados médicos, a todos os níveis, depende direta e claramente do bom funcionamento da estrutura dessas carreiras, que, num só instrumento, garantem hierarquia por mérito profissional, funcionalidade orgânica eficiente, avaliação exigente e regular pelos pares. Por todos estes motivos, a competência individual e de grupo estará garantida.

Todas as políticas dos últimos anos que, por ação ou omissão, levaram não à saturação dos serviços de saúde, mas à sua progressiva e evidente degradação, deverão ser revertidas e corrigidas, tendo como único objetivo a capacitação do SNS, para um maior e melhor acesso dos seus doentes a cuidados de saúde.

Portanto, digam tudo, mas não que faltam médicos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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