Levar a sério o problema dos animais de companhia

A abertura desenfreada de centros de recolha – oficiais ou privados – como solução para tirar os animais da rua mais não é que a perpetuação de depósitos que estão longe de lhes providenciar adequada qualidade de vida. É necessário antes investir as verbas disponíveis em outras abordagens.

Os eventos recentes envolvendo a morte de dezenas de animais em dois abrigos ilegais de Santo Tirso culminaram num autêntico furação político, com a suspensão do médico veterinário municipal, a demissão do diretor-geral da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) e a passagem da tutela dos animais de companhia do Ministério da Agricultura para o Ministério do Ambiente e da Ação Climática.

Como sempre acontece quando estão envolvidos animais, o debate tem sido extremado; por um lado, o PAN, através do seu porta-voz, e o PS, pela mão do próprio primeiro-ministro António Costa; e, por outro, as associações profissionais do setor animal, nomeadamente a Associação Nacional de Médicos Veterinários de Municípios (Anvetem) e a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV).

Num clima de grande crispação e incerteza, dois pontos importa reter. O primeiro é que, aqui chegados, todos somos responsáveis pela presente situação: cidadãos detentores de animais de companhia, profissionais do ramo animal, associações zoófilas, municípios, autoridades veterinárias locais e nacionais, deputados, governos e seus ministérios. Isso torna-nos a todos, ao invés de culpados, co-responsáveis por encontrar uma estratégia que sirva o melhor interesse dos animais. Para tal, vale a pena começar por identificar em retrospetiva o que de positivo se tem feito neste contexto, pese embora as lacunas ainda existentes.

Nos últimos anos, a frequência de campanhas de adoção e esterilização de animais de companhia aumentou drasticamente em todo o país, muito por conta da estreita colaboração entre médicos veterinários municipais e associações zoófilas. São bons exemplos o Programa CED (captura, esterilização e devolução) da Câmara Municipal de Braga ou o @ProjetoFiel do Canil/Gatil Municipal de Évora. Em 2019, foi criado o Sistema de Identificação de Animais de Companhia (SIAC), fundindo as duas bases de dados então existentes e transferindo para os médicos veterinários a responsabilidade pela identificação e registo animal. Este mecanismo, em conjunto com o novo modelo de Boletim Sanitário de Cães e Gatos (uma iniciativa conjunta da DGAV e da OMV), dificultou em muito o mercado ilegal de animais e a desresponsabilização do abandono. Outros aspetos positivos relacionam-se com estratégias que contribuíram para facilitar o acesso aos cuidados de saúde animal. São exemplos a dedução no IRS das despesas médico-veterinárias, proposta pelo PAN em 2016, ou o Programa Nacional de Apoio à Saúde Veterinária para Animais de Companhia em Risco, uma iniciativa da OMV que permite às autoridades locais (municípios e juntas de freguesia) atribuir cheques veterinários aos detentores carenciados, por elas identificados, para utilização em cuidados de saúde primários.

O segundo ponto que importa lembrar é que todos concordamos que os animais são seres sensíveis, cujos interesses urge defender. Divergimos, é certo, na melhor forma de o fazer. Tem razão André Silva quando afirma que os municípios têm falhado na sua obrigações de disporem de Centros de Recolha Oficiais de Animais (CROA), não só em número, mas também em qualidade de bem-estar animal, e que não pode o legislador andar a reboque de uma sociedade mal preparada para lidar com a detenção responsável de animais de companhia. Mas também tem razão a Anvetem quando defende que aos médicos veterinários municipais deve ser dada autonomia técnica para garantir a gestão populacional dos CROAs e que lhes deve ser conferido o poder de autoridade sanitária veterinária concelhia, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 116/98.

A sociedade precisa de desenvolver uma estratégia multidisciplinar que permita trabalhar no melhoramento da sua relação com os animais de companhia. Não é com fraturas, aproveitamentos políticos e omissão de pareceres técnicos consubstanciados que se alcança uma solução otimizada para proteger os interesses dos animais. A nossa posição é clara: a abertura desenfreada de centros de recolha – oficiais ou privados – como solução para tirar os animais da rua mais não é que a perpetuação de depósitos que estão longe de lhes providenciar adequada qualidade de vida. É necessário antes investir as verbas disponíveis em outras abordagens. Da mesma forma, as associações zoófilas e os CROAs não deveriam limitar-se a receber e manter animais nos seus canis, ou a fazer as muito úteis campanhas de adoção/esterilização. Em alguns casos, é preferível não ceder animais para adoção do que vê-los mais tarde negligenciados, mal-tratados ou sujeitos a re-abandono. Deveria ser sempre exigido uma forma de monitorização e registo do percurso dos animais após a adoção, bem como do destino das verbas implicadas. Esta estratégia não só dissuadiria a posse irresponsável de animais, como responsabilizaria as autarquias pela adequada gestão de fundos.

A frente educação é lenta, mas irreversível. O malogrado caso de Santo Tirso nunca teria gerado a mesma indignação popular nem consequências políticas há dez anos atrás, simplesmente porque as pessoas estão agora muito mais sensíveis a este tema. No entanto, muitas destas reações foram mais fruto da emoção do que da razão, sendo que a desinformação que se seguiu clama por uma estratégia educativa concertada. Desde Setembro de 2018, a Direção-Geral de Educação tem vindo a preparar, em conjunto com a DGAV, a OMV, o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e o Jardim Zoológico de Lisboa, um referencial para o Bem-Estar Animal no âmbito da disciplina de Educação para a Cidadania, e que constitui uma oportunidade educativa sobre estas matérias desde o ensino pré-escolar até ao secundário. Mas a educação para a convivência responsável com animais de companhia não pode esperar tanto tempo. Compete aos municípios, como parte integrante das suas obrigações, sensibilizar ativamente os seus munícipes sobre a detenção responsável e agir em conformidade em casos de manifesta violação, como era o caso dos abrigos de Santo Tirso.

Por sua vez, a legislação tem o poder de impulsionar uma rápida mudança de atitudes. É um instrumento que reflete princípios, mas que deve ter em conta as consequências da sua efetiva aplicação. A legislação feita em Portugal raramente analisa a priori o impacto da sua aplicação, podendo com isso levantar mais problemas do que os que pretende resolver. Neste caso, precisamos de um sólido enquadramento legal que proteja os interesses dos animais de companhia, o que passa pela sua manutenção em condições de saúde e satisfação das necessidades fisiológicas, comportamentais e mentais. Como fazê-lo em canis sobrelotados e a receber continuamente mais animais? A polarização da discussão em torno da eutanásia torna-a artificialmente um instrumento de resolução do problema. A eutanásia não é, nem pode ser, a solução principal. No entanto, excluí-la liminarmente vota centenas de animais à mais miserável das vidas, a sofrimento permanente e sem qualquer hipótese de recuperação e adoção. É, na prática, uma crueldade.

Por fim, são necessários técnicos e organismos competentes capazes de passar à prática estas medidas, usando os fundos disponíveis de forma responsável e verificável. A pluridisciplinaridade é geralmente útil, mas não percebemos como é que se vai melhorar a situação retirando este assunto do controlo das autoridades veterinárias, onde a articulação entre autoridade veterinária nacional (DGAV), médicos-veterinários municipais e profissionais do sector privado é tão drasticamente necessária. Concluímos exortando os decisores políticos a dotarem os organismos competentes, como a DGAV, de técnicos e meios capazes de fazerem frente às actuais limitações, criando políticas pró-ativas de aplicação das normas em vigor, em vez de andar simplesmente a reboque da legislação europeia. O problema não se vai resolver nunca com discursos inflamados ou manobras políticas superficiais de mudança de competências.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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