Primeiro-ministro libanês anuncia demissão culpando “corrupção”

No discurso de demissão, Hassan Diab apresenta o seu governo como o que tentou lutar contra o sistema político que levou ao desastre.

O primeiro-ministro libanês, Hassan Diab, anunciou a demissão do seu executivo na sequência da contestação popular após a enorme explosão no porto de Beirute de terça-feira passada.

Um após outro, ministros e ministras foram apresentando demissões e outros anunciando que se afastariam caso o chefe de Governo não apresentasse a demissão de todo o Governo, deixando Diab sem outra solução que não afastar-se. Ainda na véspera o movimento xiita Hezbollah, que com os seus aliados apoia o executivo, garantia que este se mantinha.

Diab declarou que a culpa pela tragédia é de uma “corrupção sistémica”​, defendendo o seu Governo como se não tivesse nada a ver com ela e, mais, como se tivesse tentado lutar contra o sistema.

“Quisemos trazer mudança para os libaneses, mas entre nós e a mudança havia uma grande parede de cimento. Esta é uma classe política que não quer deixar o seu poder”, declarou.

Diab acrescentou que a sua principal preocupação é investigar e responsabilizar quem for preciso pelo desastre e anunciou que o executivo “dá um passo atrás, para se juntar ao povo libanês na sua luta”.

No entanto, não explicou o que irá acontecer de seguida: se eleições antecipadas como tinha prometido, se um novo chefe de governo interino escolhido pelo Parlamento. Enquanto isso, o Presidente, Michel  Aoun, pediu ao Governo para se manter um funções de modo interino até ser escolhido um novo.

A explosão de uma grande quantidade de nitrato de amónio que estava há anos guardada no porto de Beirute mesmo sabendo as autoridades que se tratava de material perigoso provocou 160 mortos, seis mil feridos e deixou ainda cerca de 300 mil pessoas sem casa.

A incúria das autoridades provocou manifestações e uma enorme revolta, que aumentou ainda pela violência das forças de segurança contra manifestantes, que pedem “o fim do regime”.​ 

Não esperando necessariamente nada de novo do anúncio, as manifestações continuaram na tarde desta segunda-feira, com a polícia a usar, de novo, gás lacrimogéneo. Também depois do anúncio as pessoas continuavam a manifestar-se.

“Ninguém está a celebrar” a demissão do Governo, disse no Twitter o jornalista Timour Azhari, da Al-Jazeera. “Não parece que nada tenha mudado, politicamente estamos de volta ao ponto em que estávamos há seis meses, enquanto as condições de vida pioraram de modo dramático.”

"Em frente para o desconhecido"

Sem ideia do que poderá acontecer, muitos temem que esta demissão abra apenas caminho a longas negociações sobre quem poderá formar o próximo governo.​

O analista Imad Salamey, professor de ciência política na Universidade Americana de Beirute, diz que a saída de cena não vai ajudar. “Não só vamos ter uma ausência de governo e um vácuo político, como vamos ainda ter um grave problema com o funcionamento do Estado no Líbano”, disse ao Wall Street Journal. “Estamos a ir em frente para o desconhecido”, lamentou.​​ Tudo isto enquanto é preciso acção rápida para recuperar a cidade e a economia.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse pelo seu lado numa comunicação aos estados membros das Nações Unidas que era importante que fossem feitas reformas, e apelou ainda a uma “investigação credível e transparente determine a causa da explosão” e “traga a responsabilização exigida pelos libaneses”.​

Dentro e fora do Líbano, muitos temem que se for levada a cabo pelas autoridades libanesas, uma série de responsáveis de escalão médio acabem transformados em bodes expiatórios, deixando intocadas figuras chave.

O material perigoso esteve mais de seis anos no porto — a que alguns habitantes de Beirute chamavam a “gruta do Ali Babá e dos 40 ladrões” pela suspeita de esquemas de desvios de fundos —​ e não é plausível que os altos responsáveis não tivessem conhecimento disso.

O Líbano já enfrentava a maior crise da história contemporânea, uma crise que pôs em causa o sistema político e o modelo económico, com o governo falido, a classe média a desaparecer, tudo piorado pela pandemia da covid-19. Foi em cima de tudo isto que aconteceu a explosão, que muitos descrevem como a maior deflagração não-nuclear da história.

A jornalista Anchal Vohra contou, num artigo na revista Foreign Policy, como no dia da explosão acabara de escrever um artigo sobre a subida, para o dobro, do preço do pão porque o Governo retirou parte do subsídio para a farinha (Vohra vivia muito perto do porto, sobreviveu por sorte, com três golpes no pescoço e um pé partido; no seu bairro, havia pessoas soterradas em escombros). 

Enquanto a revolta continua, muitas pessoas estão a participar em operações de ajuda, ou de limpeza das ruas, do pó que não acaba. Um habitante de Beirute contactado pelo PÚBLICO que preferiu não ser entrevistado despediu-se dizendo: “Tenho-me mantido ocupado. Talvez só consiga ter mesmo noção do que aconteceu daqui a uns tempos.”

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