Clarence, a silly season e o tempo actual

Clarence e o absurdo irromperam neste nosso Verão de descontentamento pela intervenção inesperada, desassombrada para os indefectíveis, do sr. ministro da Ciência e Ensino Superior.

Clarence, personagem criada por Sir Pelham Grenville Wodehouse KBE em 1909, preencheu, na época, a silly season que o Merrian-Webster Dictionary definiu como período tardio do Verão marcado por frivolidade, gossip e/ou comportamento ilógico. Atribuía-se a sua origem, no século XIX, à necessidade de os jornalistas preencherem os seus espaços habituais, quando pouco ou nada parecia acontecer. P. G. Wodehouse criou Clarence, na novella cómica The Swoop! or How Clarence Saved English, o herói que salvou a Grã-Bretanha de uma invasão simultânea por nove nações estrangeiras! Captou a imaginação e a atenção dos leitores e foi um sucesso literário. Do autor, para além do brilho da imaginação, espontaneidade do humor e escrita fluente, ficou a mancha das palestras, em tempo de Guerra e enquanto prisioneiro dos alemães que o capturaram em França, palestras dirigidas para os Estados Unidos mas feitas numa emissora alemã. Daí resultou desconforto e oposição dos compatriotas, perseguição da intelectualidade inglesa e do governo francês pós-libertação de Paris. Mas George Orwell, escritor famoso, Anthony Eden, secretário do Foreign Office e os serviços secretos ingleses defenderam-no, e em 1975 Harold Wilson propô-lo na Honours List para KBE (cavaleiro do império britânico).

Prevaleceu o talento literário, o espírito de humor e a defesa de a certain Englishness!

Clarence é um personagem dum teatro absurdo. Deixou seguidores. Até neste jardim plantado à beira-mar e no século XXI, em plena pandemia, quando tanta coisa aconteceu: i) a actividade económica mergulhando num salto inesperado para o vazio; ii) a Saúde debatendo-se entre as consequências do desacerto na luta contra a covid-19 e a mortalidade excessiva nestes últimos meses, expressão clara de um falhanço ainda não assumido (a FMUL muito tem contribuído para alertar sobre o fenómeno); iii) a Educação vivendo inquieta e oscilando entre sucesso potencial ou desastre, com o sacrifício duma geração e compromisso da função social da Escola pública; e iv) a Universidade, confrontando-se entre subfinanciamento crónico e o novo e difícil desafio – a modernização e a qualidade do ensino numa época de ensino à distância.

Clarence e o absurdo irromperam neste nosso Verão de descontentamento, pela intervenção inesperada, desassombrada para os indefectíveis, do sr. ministro da Ciência e Ensino Superior, um homem inteligente cujo obra de impulso à Ciência feita em Portugal e à sua internacionalização é muito relevante, e que veio, agora, propor para a salvação da Saúde (?) a abertura de mais 15% vagas para Medicina ou, então, a criação de novos cursos médicos, públicos (Évora ou Aveiro) ou privados (Católica).

O vazio da silly season? Sem problemas, sem angústia do futuro imediato para tantos? Como se não fosse este um tempo de reflexão que deveria mobilizar, a sério, o país e a sua intelligentsia?

Este é, infelizmente, um problema antigo e não resolvido.

Recordo os meus dez anos de director da FMUL (2005-2015). Aceitámos a proposta de Mariano Gago de um novo contingente – 15% de vagas para diplomados noutras áreas – e, ao contrário de outros, foi, na nossa escola, uma experiência positiva. Introduziu-se a entrevista pessoal na selecção dos candidatos – quase até ao fim presidi a todas, o que me proporcionou uma visão objectiva das dificuldades e carências em muitas áreas (o prof. Miguel Castanho, como subdirector, substituiu-me e introduziu aperfeiçoamentos). Foi uma experiência de que guardo boa memória, recordando com emoção as palavras de muitos que me vinham comunicar ter acabado o curso médico. E uma avaliação feita demonstrou que as suas classificações eram equiparáveis às dos alunos do contingente geral.

Mas falhámos ao tentar sensibilizar o Poder para a necessidade de mudar o paradigma de selecção dos alunos para Medicina, uma luta justa, diria inglória, que poderia ter captado a atenção do sr. ministro e que, estou certo, teria o apoio global.

Esse assunto e outro: a dinamização do conceito de Centros Académicos de Medicina, que iniciámos com Mariano Gago e Ana Jorge, à época ministros do Ensino Superior e da Saúde, que as vicissitudes da política e da crise financeira atrasaram, mas ainda em 2015 o conceito foi adoptado pelo Governo em fim de ciclo e generalizado às Escolas Médicas e seus hospitais de ensino, mudando a nomenclatura, mas persistindo na essência.

Recordo muito bem a última reunião, no Teatro Thalia, em 2016, em que ainda participei já com o novo Governo socialista e não como director da Faculdade, em que foi pedido um sinal inequívoco de apoio e um impulso de mudança, referindo-se todos os intervenientes à necessidade de convergência das carreiras académica e hospitalar, acabando uma divisão inútil e absurda, que era possível sem incremento significativo de custos e combinando exigência científica, competência profissional e responsabilidade pedagógica. Uma tarefa por realizar, um objectivo por concretizar.

Dois assuntos que poderiam ter ocupado a atenção ministerial e que teriam tido grande impacto na Educação Médica em Portugal.

O que falhou então? O conteúdo da mensagem? Não parece, de tão óbvios e favoráveis parecem ser os sinais que vêm das instituições internacionais mais avançadas! Os mensageiros? Por não pertencerem ao inner circle partidário?

Foi-me sempre difícil perceber o mecanismo de decisão na Política em Portugal. Primeiro, ignoram-se as Instituições, mesmo que sobre estes assuntos tenham expressado pensamento estruturado e coerente. De facto, as Faculdades, a Associação dos Estudantes de Medicina de Portugal e a Ordem dos Médicos sempre se opuseram ao conceito proclamado de carência de médicos. Será que não são patriotas? Que actuaram por mero egoísmo pessoal ou corporativo? Obviamente, a argumentação desenvolvida por estas instituições era suportada em estudos académicos e dados objectivos sobre a realidade portuguesa e europeia. Isso e os múltiplos artigos de responsáveis, presentes e passados, mostrando o absurdo e o erro que seria o incremento do número de vagas para Medicina.

Nada disso contou. Doença que irrompe na silly season?

Há cerca de um ano, e a propósito do parecer negativo sobre duas propostas de criação de cursos de medicina em instituições privadas, publiquei artigo em que considerava a carência de médicos um equívoco, a falta de profissionais no SNS a expressão do falhanço da política de recursos humanos seguida pelas sucessivas tutelas – bem demonstrada pelo número de vagas abertas e não preenchidas, sem candidatos aos concursos. Interrogava-me, então, sobre quais as verdadeiras motivações para essas propostas. Citando o artigo: não havendo efectiva carência de médicos e conhecendo-se a complexidade de disfunções no SNS, coloca-se uma questão – que finalidade para o exercício e qual o seu interesse público? E duas perguntas. Primeira, poderá a Sociedade absorver os novos licenciados? Não creio que qualquer dos projectos proponentes de escolas médicas privadas tenha como objectivo formar quadros para as suas instituições de Saúde. Seria visão sem grandeza nem futuro, daí resultaria um risco de fechamento das instituições à competição pelos melhores profissionais, repetindo erro que sempre apontei no sector público à filosofia da casa e para a casa, a qual dificulta a circulação dos profissionais nas instituições e compromete selecção meritocrática. Segunda, pretende-se formar técnicos diferenciados para o mercado internacional, como vai acontecendo nas outras profissões da Saúde? Será por isso que se propõe o inglês como a língua oficial em cursos privados?

E ressalvava, como aliás muito bem o fez Duarte Nuno Vieira, ex-director da FMUC, em artigo recente, a total abertura para novas iniciativas de qualidade reconhecida que até poderiam ser um desafio positivo às instituições públicas.

Será que o sistema de informação que chega aos responsáveis políticos se baseia numa outra realidade? Em preconceito? Ignora o pensamento dos profissionais e das Instituições? Ou haveria algum plano congeminado no segredo dos gabinetes sobre a Educação Médica, sem a participação das entidades responsáveis no terreno?

Não sei, caro leitor, e tudo isto me surpreende e preocupa.

Agora que o País enfrentará o maior desafio da sua história contemporânea, parece-me manobra de diversão, ocupação do tempo noticioso, discussão frívola, sem substância ou fundamentação. Ou talvez me engane, e o objectivo seja pressão subtil e indirecta sobre o regulador que é o Conselho do Ensino Superior que avalia as Escolas Médicas, tutela o reconhecimento da validade de novas propostas de ensino médico e que há um ano rejeitara as duas propostas apresentadas de ensino privado de Medicina.

De facto, a independência e autonomia dos reguladores parece não ser, em Portugal, um valor fundamental!

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