“Pensei que podia ser novamente a guerra a bater à porta”, conta português a viver em Beirute

O fotojornalista João Sousa conta como o momento foi vivido na cidade. “De repente, ouvi um estrondo e o chão tremeu”, afirma o português residente em Beirute.

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Reuters/MOHAMED AZAKIR

A viver no Líbano desde Janeiro, João Sousa experimentou na primeira pessoa as explosões que, na terça-feira, fizeram pelo menos 135 mortos e mais de 5000 feridos na capital do país, e cuja origem está a ser associada a um incêndio num armazém com mais de 2750 toneladas de nitrato de amónio.

Segundo o português, que se encontrava na varanda de casa, “era um dia pacato, como qualquer outro. Nós devíamos estar em lockdown, por causa da pandemia, então estava tudo mais calmo e sossegado”. Até que, em segundos, a calma deu lugar à confusão. “De repente, ouvi um estrondo e o chão tremeu, mas não foi nada demais. Passado 30 segundos, ouvi outro e, aí sim, percebi o impacto da explosão. Foi muito potente”, revela o fotojornalista português.

Na altura, João Sousa pensou que o país, mergulhado em conflitos durante décadas, estaria sob ataque. “Pensei que podia ser novamente a guerra com Israel a bater à porta. Eu e todos pensámos isso, de início. Havia gritos e estilhaços por todo o lado”, conta, pensando depois que “vinha aí uma terceira bomba que nos vai matar a todos”. No entanto, esta situação não se confirmou, com as investigações iniciais a apontar “negligência” como causa principal do acidente.

"O meu colega de casa entrou em choque"

João Sousa vive a cerca de um quilómetro do porto de Beirute e revela que, aquando da segunda explosão, “o colega de casa entrou em choque. Não sabia o que fazer. Eu só tive tempo de lhe pedir para pegar na mochila e levar coisas importantes, porque podíamos não voltar”. Àquela distância, o “impacto foi forte. Principalmente o da segunda explosão, que partiu os vidros todos”. 

Há, também, relatos de danos estruturais em edifícios. Peter Noun disse ao New York Times que no Hospital St. George “todas as divisões estão danificadas. Caiu tudo, todas as janelas estão destruídas e os tectos estão em pedaços.” 

Desde a explosão, vários líderes internacionais têm anunciado apoios económicos ao Líbano, para ajudar o país a recuperar dos danos causados pelo acidente. 

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Beirute: uma cidade destruída a ser acudida por voluntários

Na quarta-feira, João Sousa deslocou-se até à downtown de Beirute, uma das zonas circundantes ao local das explosões, para fotografar e filmar os efeitos do acidente. O que encontrou, surpreendeu-o: “Encontrei um festival de voluntários. As pessoas estão chocadas e têm raiva, mas há voluntários de um lado para o outro. Oferecem água, comida, curativos. Estão a tentar normalizar uma situação nada normal”. Os danos são, no entanto, avultados.

Ao PÚBLICO, o português relata que os edifícios - ainda que estruturalmente intactos - estão, na sua maioria, sem vidros: “É uma cidade que, de repente, está despida, destruída”. João Sousa sofreu, ele próprio, danos materiais: “Na minha casa, a porta não fecha. Além disso, está toda cheia de estilhaços.”

“Eu levo uma vida de nómada. Saí de Portugal há 14 anos e antes de estar no Líbano estava na Geórgia”, revela. Regressar a Portugal está, por enquanto, fora dos planos, pois “seria só mais um lugar, não uma casa”. A aventura no Líbano começou, ela própria, devido ao “espírito de aventura. Vim aqui passar férias com amigos e no dia seguinte o jornal L'Orient-L'Jour contratou-me e por aqui fiquei.” 

A crise, as explosões e um “país a rebentar pelas costuras"

Enfrentando a pandemia de covid-19, o Líbano luta, também, com uma grave crise económica e financeira. Os hospitais, além de destruídos pelo impacto das explosões, estão cheios. “Houve, inclusive, situações em que as pessoas foram mandadas para casa, porque não tinham capacidade de as ajudar”, conta João Sousa. “É uma situação complicada porque não existe capacidade logística para albergar tanta gente. O Líbano é um país a rebentar pelas costuras”. 

Na terça-feira, diversos líderes internacionais manifestaram solidariedade com o Líbano, enviando ajuda humanitária e equipas de busca e salvamento. Ainda assim, “os pedidos de ajuda têm sido feitos apenas à escala nacional”, afirma João Sousa, e são, sobretudo, “para doações de sangue e medicamentos”.

A explosão terá tido origem num armazém de pirotecnia na zona portuária da capital libanesa Reuters/AZIZ TAHER
Os edifícios nas imediações da explosão sofreram danos estruturais, como mostra a fachada deste prédio Reuters/AZIZ TAHER
O porto, situado junto à baixa da cidade, ficou totalmente destruído Reuters/MOHAMED AZAKIR
O armazém continha 2750 toneladas de nitrato de amónio, um componente químico utilizado no fabrico de foguetes e explosivos Reuters/AZIZ TAHER
O exército foi convocado pelo governo local para ajudar nas operações de combate ao incêndio que deflagrou no local da explosão Reuters/ISSAM ABDALLAH
Militares saíram à rua para ajudar nos trabalhos de limpeza e de resgate Reuters/AZIZ TAHER
Os edifícios circundantes ficaram totalmente destruídos, dificultando as operações de resgate às equipas presentes no local EPA/WAEL HAMZEH
Habitantes da cidade de Limassol, no Chipre, a cerca de 240 quilómetros do local da explosão, relatam ter sentido o abalo EPA/WAEL HAMZEH
Testemunhas no local afirmam haver automóveis lançados para o topo de edifícios de três andares EPA/WAEL HAMZEH
Até ao momento, não há registo de portugueses entre as vítimas da explosão Reuters/AZIZ TAHER
Os soldados patrulham as ruas enquanto os trabalhos de limpeza e resgate decorrem na cidade Reuters/AZIZ TAHER
Os populares tentam ajudar as autoridades na limpeza dos estragos causados pela explosão Reuters/AZIZ TAHER
Existem danos em diversos edifícios e serviços da capital libanesa Reuters/AZIZ TAHER
As causas do acidente ainda estão por apurar, mas investigações preliminares apontam para negligência Reuters/MOHAMED AZAKIR
Estima-se que existam 4000 feridos, mas o real número de vítimas ainda não é claro Reuters/MOHAMED AZAKIR
A explosão, que terá alastrado a um navio atracado no porto, teve origem no edifício ao centro da imagem EPA/WAEL HAMZEH
Durante a manhã de terça-feira, ainda existiam alguns incêndios no local da explosão EPA/WAEL HAMZEH
Diversos países já se disponibilizaram para disponibilizar ajuda médica e humanitária, incluindo a Turquia, que já colocou voluntários de uma ONG no terreno Reuters/IHH
Os hospitais, que já se encontravam lotados devido à pandemia de covid-19, temem não ter capacidade para dar resposta às vítimas do acidente Reuters/IHH
De entre os edifícios afectados, estão alguns hospitais, que foram evacuados, tendo alguns feridos sido tratados em parques de estacionamento da cidade Reuters/MOHAMED AZAKIR
O custo total dos danos materiais causados pela explosão ainda está por apurar EPA/WAEL HAMZEH
Os edifícios portuários foram os primeiros a sofrer com a onda de choque da explosão. Há, inclusive, relatos de navios que afundaram EPA/WAEL HAMZEH
Também o Irão enviou ajuda humanitária através da ONG Crescente Vermelho, que colocou voluntários no terreno para ajudar as equipas no local Reuters/WANA NEWS AGENCY
A República Checa enviou para Beirute membros de equipas de busca e salvamento Reuters/DAVID W CERNY
As equipas checas são compostas por binómios cinotécnicos (humano + cão), e têm como objectivo ajudar a procurar vítimas nos escombros Reuters/DAVID W CERNY
As operações de limpeza e salvamento nos escombros da explosão na zona portuária continuam EPA/NABIL MOUNZER
A explosão fez com que habitantes da cidade ficassem desalojados EPA/NABIL MOUNZER
Os habitantes dos bairros de Mar Mikhael e Gemayzeh, próximos da zona portuária, procuram, agora, realojar-se noutro local EPA/NABIL MOUNZER
França é outro dos países a enviar ajuda humanitária para Beirute, com equipas de busca e salvamento, pessoal médico e material de primeiros socorros EPA/BERTRAND GUAY / POOL
Na cidade, multiplicam-se os esforços populares para ajudar nas buscas EPA/NABIL MOUNZER
Segundo os responsáveis libaneses, existem mais de 4000 feridos e 100 mortos. No entanto, estes números devem subir nas próximas horas EPA/NABIL MOUNZER
A ONG iraniana Crescente Vermelho tem enviado ajuda humanitária para a região, à qual se junta, agora, o apoio do governo de Teerão EPA/STR
O presidente iraniano, Hassan Rouhani, decidiu apoiar o Líbano e vai enviar mais ajuda humanitária para a região nas próximas horas Reuters/WANA NEWS AGENCY
Também edifícios governamentais ficaram danificados, como o palácio presidencial e embaixadas de outros países em Beirute EPA/WAEL HAMZEH
EPA/NABIL MOUNZER
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A explosão terá tido origem num armazém de pirotecnia na zona portuária da capital libanesa Reuters/AZIZ TAHER

O futuro

Poderá este acidente ter consequências a nível sociopolítico? “Não sei. Mas há um desespero novo”, refere o português. “Dizem-me que nem com a Guerra Civil havia algo assim. Os libaneses defendem muito os seus líderes, mesmo que sejam maus”.

Algo que, refere, tem afectado directamente a vida do país: “No Líbano, é cada vez mais difícil ter coisas básicas, como água potável ou electricidade durante mais de duas horas, por exemplo. E isso porque os libaneses sabem que os governantes são corruptos, mas votam neles por orgulho e defesa da pátria, no fundo”.

Com um país fustigado pelos conflitos armados do passado, os libaneses são, ainda assim, “um povo aberto, boémio e afável. Mas agora até os optimistas não conseguem ver nada de positivo e não sei o que poderá isso representar para o futuro do país”.

Texto editado por Ivo Neto 

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