“Sempre sofri bullying por ter paralisia cerebral. Quero mudar mentalidades”

A paralisia cerebral foi-lhe diagnosticada aos três anos. Vinte anos mais tarde, Inês Oliveira, no terceiro ano da licenciatura em Educação Social, lançou o livro Sentires Especiais, onde conta a sua história e tenta alertar para a inclusão. “Há muito estigma, muito preconceito, falta de acessibilidade e falta de reconhecimento perante as pessoas com necessidades educativas.” Um testemunho construído a partir de entrevista.

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Diogo Ventura

“Nasci com o cordão umbilical à volta do pescoço e estive um mês internada. Aos três anos foi-me diagnosticada paralisia cerebral. Dei entrada no Centro de Reabilitação de Alcoitão, onde sou seguida até hoje, e durante muitos anos fiz fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. Os principais sintomas são a ataxia [descoordenação dos movimentos] e a fala atrapalhada. Quando estou muito nervosa tenho tremores nos membros superiores e a fala começa a enrolar.

Fui criada com os meus avós maternos, foram eles que me ajudaram na recuperação. Tirei o curso técnico de Turismo, o curso técnico superior profissional de Promoção de Actividades Educativas, Sociais e Culturais e actualmente vou para o terceiro ano da licenciatura em Educação Social no Instituto Superior de Ciências Educativas em Odivelas.

Sempre sofri bullying. Nos primeiro e segundo anos, frequentei uma escola onde a professora e os meus colegas me punham de lado, foi muito difícil conseguir ter uma aprendizagem. O que me valia era o suporte da minha mãe, que era professora e todos os dias ia a casa dos meus avós fazer os trabalhos comigo.

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Nos terceiro e quarto anos, os meus pais transferiram-me de escola e as coisas lá correram bem. Fui integrada. Tinha uma funcionária sempre disponível para mim, que me ajudava em tudo: nos almoços, a mudar de roupa. E aí as coisas começaram a normalizar. Mas sempre houve um estigma. No quinto e no sexto, voltei a mudar de escola e as coisas começaram a piorar. Não a nível de notas, porque eu sempre fui boa aluna, mas em termos de socialização. Cuspiam-me na cara, pontapeavam-me, puxavam-me os cabelos, tiravam-me os óculos, roubavam-me as coisas, ofendiam-me... Nos anos seguintes, acontecia sempre o mesmo. As raparigas eram as minhas principais agressoras.

Fiz os exames nacionais e tirei o curso técnico superior profissional de Promoção de Actividades Educativas, Sociais e Culturais. O meu orientador propôs-me um projecto inclusivo: dois pacotes turísticos para pessoas com necessidades especiais, sempre com materiais adaptados. Há muitas limitações, ainda mais para pessoas que estão em cadeiras de rodas. O que falta às pessoas é a sensibilidade, olharem para o outro. Principalmente para as pessoas com necessidades.

Fiz estágio e chumbei devido ao estigma e preconceito. Implicaram com a minha fala, com o meu tremer, diziam que eu fazia coisas que não era eu. Sinto que há muito estigma, muito preconceito, falta de acessibilidade e falta de reconhecimento perante as pessoas com necessidades educativas. Não somos reconhecidos como pessoas normais. Senti isso enquanto pessoa e enquanto técnica. Faço voluntariado numa escola do 1.º ciclo e, por vezes, acontece muito o “ver para crer”: tens que que provar à sociedade que és uma boa profissional, uma boa técnica, tendo as tuas limitações.

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Em muitos profissionais de educação — falo nesta área, que é uma área em que trabalhamos com crianças e jovens com necessidades educativas —, ainda existe muito estigma. Lembro-me que uma professora disse à minha mãe: “A Inês não consegue fazer os exames nacionais, porque vai frustrá-la.” Os técnicos e professores têm que ser uma motivação para os pais e para as crianças.

O livro Sentires Especiais começou com a morte da minha avó materna, em 2012. Ela foi uma grande referência na minha vida. A morte dela revoltou-me imenso. Sempre foi a minha segunda mãe, foi ela que me deu educação. E foi com o meu avô que eu comecei a escrever e ganhei a paixão pela escrita.

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Um dia, não estava nada bem, umas semanas após a minha avó morrer. Decidi “isto não fica assim, estou farta disto”. Escrever era uma terapia, uma auto-ajuda. Afastava a minha dor. Porque eu não queria passar a dor à minha mãe. Escrevi um poema no Facebook e a minha mãe e o meu melhor amigo começaram a incentivar-me para escrever. No primeiro momento não liguei. Mas depois comecei a escrever textos e a publicar nas redes sociais. Sempre com aquela incerteza, com medo do que as pessoas iam pensar.

Em 2014 comecei a escrever o livro, até 2017/2018. O que eu idealizei para este livro era contar um bocadinho da minha infância, como foi, as pessoas que passaram por mim. Surgiu agora a oportunidade de publicar com a editora Novembro. Acho que é um exemplo para outras pessoas, outras pessoas com deficiência, com paralisia cerebral, com outras patologias, mas também adolescentes sem patologias, para os pais, para as famílias, para os técnicos. Acho que é uma motivação.

Quero dar um sinal de esperança às famílias e aos adolescentes e jovens, mas também às pessoas que lidam com eles enquanto técnicos. Uma forma de superação e de esperança, de inclusão também, que é o grande objectivo deste livro. Falar da inclusão na sociedade para estes jovens. 

Acho que temos que mudar mentalidades, só assim mudamos uma sociedade. Para que ela seja diferente com essas pessoas, não as julgando, mas sim acompanhando, dando motivação, força e coragem, esperança, abrindo-lhes uma porta, uma palavra amiga, um conforto, uma mão.

O que me revoltou mais a escrever este livro não foi só a morte da minha avó, foi o cinismo das pessoas perante as pessoas com necessidades educativas especiais. Cheguei a presenciar técnicos e professores a serem muito agressivos com estas crianças... E essa é a minha maior revolta. Estas crianças podem ter dificuldades e necessidades, mas nós podemo-nos adaptar. Podemos ajudá-las a superar os seus obstáculos e as suas barreiras. Acima de tudo, tratando-as como pessoas iguais às outras, como pessoas válidas.”

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