Espanha entre o virar de página e o fim de uma era

O melhor mesmo é virar a página com o exílio de Juan Carlos, esperar que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de Estado de que a Espanha precisa para navegar nestas águas turbulentas.

Os derradeiros gestos, as últimas decisões, as atitudes recentes são quase sempre as histórias que determinam as biografias e Juan Carlos I dificilmente escapará a esse destino.

No futuro, será certamente lembrado como o rei insensível que gastava centenas de milhares de euros em caçadas, quando o seu povo sofria as agruras da austeridade, o monarca que aceitou donativos multimilionários de soberanos estrangeiros, quando a Espanha precisava de uma coroa imune aos desvarios éticos para conservar o seu papel de cola contra os nacionalismos e os extremismos, o chefe de Estado a viver uma vida paralela que negava as exigências que se requerem a um monarca constitucional.

Mas se esse destino é tão justo como incontornável, não faz sentido resumir o papel histórico de Juan Carlos a esses comportamentos vis. Há um outro desempenho que não pode nem deve ser esquecido: o que alavancou a transição pacífica de uma ditadura violenta e anacrónica para uma democracia que deu origem a um país vibrante, próspero e europeu.

Se a Espanha é hoje o que é, com a sua influência cultural, o seu nervo económico, a sua impressionante infra-estrutura ou o seu dinamismo social, deve-o muito ao papel que Juan Carlos teve nos anos críticos da transição. E se a Espanha quer continuar a ser o que é, com a sua abertura europeia, o seu cosmopolitismo e o seu estatuto de Estado que acolhe a diversidade, tem de saber valorizar o papel que o rei emérito desempenhou e o papel que a monarquia continua a ter como cimento da sua diversidade.

O rei que faltou aos seus deveres, que abdicou e agora se exila aumenta as dificuldades de afirmação do herdeiro do trono e torna ainda mais complexos os terríveis desafios que a Espanha enfrenta – seja o do nacionalismo catalão, o do extremismo político ou o dos danos da pandemia. Mas acreditar que o exemplo sórdido de um rei exige que o modelo constitucional se reinvente num quadro tão exigente e incerto como o de hoje é uma aposta de risco com sérias probabilidades de correr mal.

É por isso que o melhor mesmo é virar a página com o exílio de Juan Carlos, esperar que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de Estado de que a Espanha precisa para navegar nestas águas turbulentas. Por deplorável que seja, o triste fim de Juan Carlos não basta para se questionar os fundamentos de um regime que construiu a Espanha moderna e democrática que gostamos de ter como vizinha.

Sugerir correcção