O (não) aumento de vagas em medicina

A proposta apresentada às Universidades de aumento de 15% de vagas em medicina, nos termos em que foi feita, apenas pode encontrar justificação na ignorância da realidade ou num posicionamento de mero populismo.

A decisão unânime das universidades com ensino médico de não aumentarem o numero de vagas em medicina, apesar da autorização do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nesse sentido, tem sido objeto de múltiplas abordagens na comunicação social. Muitas das notícias publicadas envolvem a insinuação que se estará perante uma postura corporativista, no sentido da manutenção de uma situação de privilégio habitualmente atribuída à classe médica, com alusão até a uma certa conivência da própria Ordem dos Médicos.

Foi também anunciado que o ministro Manuel Heitor, perante tal contexto, estará em conversações com outras universidades, públicas e privadas, visando a criação de novos cursos de medicina. Lamentavelmente, a esmagadora maioria das noticias não teve a preocupação de procurar perceber qual a razão que esteve por detrás da decisão das universidades, tendo sido poucos os meios de comunicação social que se deram ao cuidado de ouvir quem legitimamente representa as Faculdades de Medicina e de Ciências da Saúde do país, isto é, o Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), ou então a Plataforma para Formação Médica em Portugal (que envolve Ordem dos Médicos, Associação Nacional de Estudantes de Medicina e o próprio CEMP).

Convirá, assim, clarificar alguns aspetos para os cidadãos em geral:

1. Se existe ano escolar em que o aumento de alunos em medicina (e nas restantes áreas da saúde) não deve ocorrer, esse é precisamente o ano escolar de 2020/2021. Porquê? Porque o ensino médico tem (deve ter) uma enorme componente prática logo desde o seu início, sendo que o contexto de pandemia implica, todavia, a necessidade de se procurar reduzir o numero de alunos nas enfermarias e nas unidades de saúde. No próximo ano letivo vai ser muito problemático proporcionar adequado ensino prático a todos os estudantes de medicina, sendo absolutamente impensável colocar ainda mais alunos nos hospitais. Seria, aliás, uma total insensatez fazê-lo.

2. Propor um aumento até 15% de vagas num curso tão dispendioso quanto o de medicina, sem se proporcionar um correspondente aumento de financiamento universitário, fazendo-o, ainda por cima, para um ano escolar em que diversas universidades se confrontam com a inevitabilidade de mais cortes nos orçamentos das respetivas Faculdades de Medicina, seria proposição que se poderia classificar de desonesta ou, no mínimo, de pouco séria. Convirá sublinhar, aliás, que o ensino médico só tem sido possível em diversas escolas médicas graças ao trabalho gratuito de muitos médicos que aceitam exercer funções como docentes voluntários, isto é, ensinando sem a retribuição a que teriam direito, e isto porque não há orçamento suficiente para lhes pagar.

Mas esta é situação que, visivelmente, não preocupa quem pretende o aumento de vagas e que, pelos vistos, gostariam até de ver ampliada. E convirá relembrar, também, que os sucessivos governos jamais concretizaram a publicação de um diploma com um estatuto sério de estabelecimentos de saúde e de hospitais universitários, valorizando devidamente o exercício de atividade formativa na progressão e retribuição no âmbito das diversas carreiras médicas e da saúde.

3. Afirmar, como elemento justificativo desta decisão de aumento das vagas, que o país tem carência de médicos, representa o mais absoluto desconhecimento da realidade ou, então, a deliberada utilização de argumento falso. É preciso afirmar, e de uma vez por todas, que o país não tem, nem vai ter, qualquer carência de médicos! Já Lobo Antunes tinha demonstrado claramente esta realidade há muito anos atrás no seio da Academia Nacional de Medicina, e dados da OCDE de 2017 mostram que Portugal é terceiro maior país em número de médicos (em 36).

Aliás, Portugal esbanja fortunas, através do esforço dos seus contribuintes, a formar médicos (e médicos dentistas) para exportação, pois formamos médicos a mais... Quem tem carência de médicos (e vai seguramente continuar a ter, haja ou não mais vagas em medicina) são os serviços públicos! Mas estes têm tal carência como resultado das deficientes condições de trabalho e, sobretudo, dos ordenados absolutamente irrisórios que oferecem à classe médica, levando os jovens médicos a optarem pelo setor privado ou pela emigração.

A carência de profissionais dos serviços públicos de saúde não resulta minimamente, repete-se, da falta de médicos (apenas 52,3% dos médicos portugueses trabalham no SNS). Poderia ser, aliás, ocasião para questionar qual a razão para um jovem magistrado receber salários tão superiores aos de um jovem médico e ter subsídio de alojamento quando colocado em zonas mais interiores do país, e de um jovem médico não ter direito a tal apoio?

4. Acresce que pretender aumentar até 15% o número de estudantes de medicina, sabendo que não vai ser possível proporcionar-lhes depois a imprescindível formação especializada após a conclusão do curso, é esquecer (ou omitir despudoradamente) a vergonhosa realidade em que muito jovens médicos se vêm hoje em dia, de ficaram com um curso médico nas mãos sem terem acesso a uma vaga de especialidade (pois, alegadamente, os serviços não têm mais capacidade formativa), permanecendo como mão de obra indiferenciada, com salários que rondam já, nalguns casos, menos de 10€ por hora.

5. Na justificação da proposta de 15% mais de vagas com o pretexto de carência de médicos, esquecem-se os milhares de novos médicos portugueses que têm vindo de universidades estrangeiras, situação que continuará a suceder independentemente de se abrirem mais vagas em medicina ou não. É que estes são, habitualmente, alunos com baixas classificações, mas provenientes de segmentos sociais economicamente mais favorecidos, e que continuarão a ir frequentar o seu curso de medicina num outro país, pois um alargamento de mais uma ou duas centenas de vagas em medicina continuará a não lhes permitir o ingresso nas Escolas Médicas nacionais, mesmo apesar da ligeira diminuição da média de entrada que poderá implicará.

6. Propor mais 15% de vagas, sabendo que diversas Escolas Médicas não têm, em termos de espaços físicos, capacidade sequer para os alunos que já as frequentam, é também sinal de profunda insensatez. As atuais instalações da Faculdade de Medicina de Coimbra, por exemplo, foram projetadas quando esta Escola tinha apenas 100 alunos por ano, tendo sido construídos então auditórios para um máximo de 150 alunos, mas tendo atualmente já mais de 300... E permanecem por construir edifícios fundamentais para o ensino previstos desde há décadas, por falta de verbas específicas governamentais. Outras Escolas vivem realidade similar.

Teria sido bem mais relevante que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior se preocupasse em criar adequadas condições de ensino médico para os alunos que já o frequentam antes de pensar em agravar, ainda mais, o excessivo número de alunos com que diversas escolas médicas já se confrontam.

Haveria muito mais a dizer, mas as limitações de espaço não permitem. Diríamos assim, em resumo, que a proposta apresentada às Universidades de aumento de 15% de vagas em medicina, nos termos em que foi feita, apenas pode encontrar justificação na ignorância da realidade ou num posicionamento de mero populismo (sempre interessante para a captura de mais votos). Não acredito na primeira hipótese. Uma outra explicação poderá residir no desejo de conceder o ensino médico a outras universidades e, sobretudo, ao sector privado e aos fortes interesses económicos instalados neste setor, com as consequentes pressões. Na realidade, era absolutamente óbvio que a resposta das Universidades iria ser a que foi, pois não poderia ser outra.

Estará a procurar-se, assim, obter uma justificação para a entrega, sem mais, de ensino médico ao sector privado? A verificar-se, seria absolutamente lamentável, mas não surpreendente. Note-se que nada tenho contra o ensino médico privado (se de qualidade assegurada), mas apenas se representar um alívio da sobrecarga de alunos no ensino médico público, que, por sua vez, não precisa de forma alguma de mais Escolas Médicas. Está sobejamente demonstrado que cinco a seis Escolas Médicas seriam plenamente suficientes para o país, mas temos já nove, devido a compadrios políticos e aos (des)governos de anteriores decisores.

Os sucessivos ministros com tutela do ensino superior não deixaram qualquer memória positiva no que se refere ao ensino médico. Tudo o que lhes vimos proporcionar até hoje, em termos de uma melhoria efetiva e perene do setor que tiveram sob a sua responsabilidade, traduziu-se sempre numa mão vazia e na outra cheia de nada. Alimento a esperança que não volte a ser assim.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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