“Vou resistir o máximo que puder.” Inquilinos de prédios expropriados para construção da mesquita da Mouraria têm de os desocupar

Inquilinos e proprietários de prédios expropriados pelo município para construção da mesquita da Mouraria na Rua do Benformoso receberam cartas para a desocupação dos imóveis. Câmara quer avançar com os trabalhos de demolição para a construção da nova praça da Mouraria.

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Os prédios localizam-se na Rua do Benformoso, uma das mais multiculturais do país Enric Vives-Rubio/Arquivo

Ao longo dos últimos quatro anos, António Barroso fez do seu projecto de vida uma dura batalha contra a Câmara de Lisboa, para tentar reverter uma decisão que parece irrevogável: a expropriação dos dois prédios na Rua do Benformoso para que ali nasça uma nova praça e uma nova mesquita na Mouraria. Quatro anos depois, abriu-se novo capítulo nesta longa história: as cartas para a desocupação dos imóveis começaram a chegar. A 28 de Janeiro, António Barroso recebeu uma carta do município, dando nota que a entrega das chaves do 145 e 151-A da Rua do Benformoso deveria ser feita dentro de “180 dias úteis”. Ao PÚBLICO, o homem de 68 anos promete não baixar os braços. “Eu vou resistir o máximo que puder.”

Em 2006, António Barroso viu naqueles dois prédios a oportunidade de fazer um bom investimento. Conhecia bem a zona, uma das mais multiculturais do país, porque ali trabalhava — e trabalha — desde a década de 60. Fez obras profundas que, segundo conta, estiveram sujeitas uma série de restrições por estarem inseridos na zona histórica da Mouraria: teve de proteger e manter os azulejos do século XVIII de um dos prédios e não pôde utilizar alumínios e soalho flutuante para respeitar o plano original do prédio, “o que veio encarecer toda a recuperação”. Entretanto, com uma alteração ao Plano Director Municipal em 2012, os prédios deixaram de estar inseridos nessa zona. ​

Foi também nessa altura que a Câmara de Lisboa apresentou o projecto “Nova Praça da Mouraria”. Com esta obra, as ruas da Palma e do Benformoso ficariam ligadas e seria construída uma mesquita, num protocolo com o Centro Islâmico do Bangladesh. 

No final de Maio de 2016, a autarquia acabaria por tomar posse administrativa dos dois prédios que António Barroso tinha comprado e recuperado. Seriam demolidos para ali ser erguida a nova praça e a mesquita. Desde então, António Barroso contesta a decisão. Diz que não houve uma efectiva discussão entre as partes, e avançou mesmo para os tribunais para tentar reverter a decisão. Chegou a apresentar uma providência cautelar para travar a expropriação, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que acabou por dar razão à câmara por haver “inquestionável interesse público”. É precisamente isso que a autarquia responde ao PÚBLICO, notando que o processo de expropriação ficou concluído em Março de 2017. 

António Barroso também não concorda com a indemnização que foi fixada pelo tribunal relativa aos edifícios que recuperou e que começou a arrendar a serviços e turismo. Segundo diz a câmara, o tribunal fixou o valor de indemnização em 692.174,46 euros para o prédio de três andares e 197.650 euros para o outro. “Este valor está depositado desde então à ordem do proprietário”, diz a autarquia. António Barroso garante nunca ter tocado nesse dinheiro.

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Há quatro anos que António Barroso se bate contra uma decisão que parece irrevogável: a expropriação de dois prédios, para que naqueles terrenos sejas contruídas uma praça e uma mesquita ENRIC VIVES-RUBIO

Antes de partir para os tribunais, a autarquia reviu o valor da indemnização, propondo cerca de 900 mil euros “como compensação”. Neste valor, incluíam-se os valores das indemnizações que António Barroso teria de pagar aos seus inquilinos — um restaurante e uma agência de viagens. Esse valor, nota o município, foi “novamente recusado pelo proprietário”. António Barroso diz que considerou esse valor baixo face ao valor patrimonial que acredita que os imóveis têm. “Por que razão é que tenho de entregar um valor patrimonial de 1,5 milhões e eles pagarem-me 600 mil?”, protesta. Aguarda ainda o desfecho de duas acções — uma para tentar declarar nula a expropriação e outra que contesta o valor da indemnização atribuída ao prédio maior —, mas nenhuma tem efeitos suspensivos sobre o processo. 

“Eu não estou contra a mesquita”

Tem batido a todas as portas. Já escreveu à Provedoria de Justiça, ao Presidente da República, ao primeiro-ministro. Quando há respostas, o caso é remetido para a Câmara de Lisboa ou para o tribunal. “A senhora não sabe o que eu tenho sofrido por causa daqueles prédios”, desabafa. 

Como deixou de ser o proprietário dos prédios, ao longo dos últimos anos, não conseguiu fazer novos contratos de arrendamento. O rendimento que conseguia com a pequena loja que explora nuns prédios abaixo e com o negócio de alojamento local permitia-lhe fazer face às despesas que tem com empréstimos bancários, contraídos para comprar os imóveis e fazer as obras, pelos quais paga mensalmente cerca de 2300 euros. 

Além do prédio onde habita, António Barroso era também proprietário do número 151-B. Para esse, a autarquia deu-lhe “20 dias úteis” para o desocupar. Esse prazo já passou, assim como o que foi dado aos proprietários do restaurante e da agência de viagens aos quais arrenda dois espaços comerciais no rés-do-chão – que também não saíram e mantêm ali os seus negócios. António Barroso reitera que não está contra a construção da mesquita. “Eu estou contra a maneira como o processo está organizado, de não me trocarem os prédios, de prejudicarem a minha vida”, lamenta.

O PÚBLICO questionou ainda a Câmara de Lisboa sobre a data para o início da demolição dos prédios, mas não obteve resposta. Ainda assim, o município mostrou interesse em seguir, em breve, com esses trabalhos de demolição. “Cumprindo a decisão do tribunal a CML informou sempre os expropriados que, a partir da posse, a sua permanência nos imóveis seria temporária. Em Janeiro deste ano os ocupantes comerciais e o senhor Barroso foram notificados da necessidade de libertarem o espaço, no prazo de 180 dias úteis (já cumpridos) para o início das demolições, sondagens e escavações. Por razões de segurança não é compatível a realização dos trabalhos de demolição e escavações com a permanência de pessoas no local”, disse a autarquia. 

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