Dia 88: O medo pode isolar-nos

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

Há pessoas que adoram observar pássaros e passam os dias de binóculos colados à cara a tentar descobri-los entre as folhas das árvores, e há pessoas, como eu, que preferem observar outras pessoas. E conversar com elas, se houver oportunidade. Birdwatchers e Peoplewatchers, acho que se procurares no Google encontras!

Temi que este ano o distanciamento social imposto pela covid-19 pusesse em risco o passatempo que torna menos monótonos os meus dias na praia, mas felizmente descobri que tanto a minha audição, como a minha visão, superaram a barreira dos 60 anos e continuam a permitir ir seguindo as vidas alheias. Um alívio.

E foi no decurso deste exercício sociológico que constatei que num toldo próximo uma mãe de dois filhos — teriam um ano e meio e quatro, suponho —, escapou para um mergulho, deixando o marido estendido na toalha de atalaia. Nem cinco minutos depois as criaturinhas vendo o pai ferrado a dormir, e sentindo-se sozinhas, em lugar de o acordarem (os pais nunca se acordam!), optaram por se lançar pela praia fora em direcção ao mar, até porque dali viam a mãe na água.

Não corriam qualquer perigo, mas o pior é que o mais bebé tropeçava caía e ficava com a cara cheia de areia, o que aumentava o pânico.

Pois, aconteceu exactamente aquilo em que estás a pensar: cheia de pena da pobre mãe que tentava voltar para terra o mais depressa que podia, saltei do meu toldo como uma seta e ajudei o pequenino a levantar-se, que se sentou confortavelmente ao meu colo, enquanto ia conversando com o maior, procurando sossegá-lo. Só depois me lembrei do raio da máscara! E do distanciamento social, claro.

Mas a mãe não. E parece-me que não ficou nada contente com o meu “salvamento” em tempo de pandemia, porque se limitou a um “obrigada” muito seco, e a conversa acabou ali, embora lhe tivesse tentado explicar o que tinha acontecido — mas, talvez, estivesse bloqueada pela fúria com a surdez repentina do marido, que continuava alegremente a ressonar. Mas, de facto, seria compreensível que ficasse preocupada, depois de tanto trabalho que as famílias tiveram em confinar-se, no esforço de não pedirem ajuda a avós e afins, e depois tudo é colocado em risco por uma vizinha de toldo. Simplesmente, ver e não fazer nada também estava, para mim, fora de questão... Embora, reconheço Ana, posso melhorar no automatismo da máscara...

Seja como for, fiquei a pensar que há um grande risco de que o medo, às vezes mesmo terror fóbico, nos torne mais isolados, mais individualistas, com maior dificuldade em estabelecermos contacto com “estranhos”, de tal maneira estamos fechados nos nossos grupinhos que, por uma crença absolutamente irracional, julgamos mais protegidos do que os outros. Menos solidários. Pela minha parte, recuso furiosamente esse efeito secundário do raio do vírus.

No início da pandemia um ministro sueco dizia que o distanciamento social era natural na Suécia, e que por isso não seria necessário grande esforço para o implementar. Mas com todo o respeito pelos nórdicos, neste campo não quero mesmo que nos tornemos como eles. Nem que à boleia da covid-19 importemos o receio paranóico de tocar numa criança que não nos “pertence”, afagando-lhe o cabelo, ou ajudando-a a levantar-se, reféns desta vez do vírus do medo do abuso sexual infantil, que tal como o coronavírus existe e é ainda mais tenebroso, mas que nem por isso pode tomar de assalto a nossa humanidade.

Ana, não falo de cor, vi com os meus próprios olhos em escolas inglesas que visitei, como os educadores de infância e os professores primários são “fortemente” aconselhados a não tocar nos seus alunos — sinceramente não podia ser nem educadora, nem professora num sistema assim, porque para mim o abraço, o colo, a festinha fazem de tal forma parte da minha maneira de falar com os mais pequenos, que ficaria paralisada.

Ui, onde já vai o meu Peoplewatching. Bem, esta carta é só para te dizer que se a CMTV abrir o noticiário com uma louca que pegou numa criança “estranha” ao colo, sem máscara, nem respeito pela distância social, é da tua mãezinha que falam.


Mãe,

Hahaha obrigada pelo aviso!

Não há nada melhor do que observar pessoas e ouvir as suas conversas. A covid-19 complicou tudo isto, não só porque agora é preciso ouvir de mais longe, mas também porque tornou as conversas mais monótonas! Não se fala de outra coisa.

Concordo consigo, tenho imenso medo do medo que ficou em nós, do medo de nos aproximarmos, do toque. É horrível pensar que podemos nunca mais voltar a essa normalidade. Nas escolas, então, faz-me falta de ar imaginar que as educadoras e os professores adquiram este ‘hábito’ de distanciamento social para além da pandemia. Trabalhei num jardim-de-infância em Londres e fazia-me tanta impressão exactamente o que descreveu, não só a falta do toque emocional — apesar de todas as educadoras serem queridíssimas com os miúdos, não se abraçavam, era impensável dar colo, etc. —, mas ainda pior era esse medo omnipresente do abuso sexual e do “contacto impróprio”, o que criava uma barreira invisível e uma constante auto vigilância dos nossos próprios gestos, retirando-lhes espontaneidade. Mais impressionante ainda foi ver como os miúdos responderam à minha maior proximidade física: passavam o tempo inteiro a pedir-me colo, a darem-me a mão, a encostarem-se a mim. Ou seja, sentiam falta do que eu lhes tinha para oferecer.

É claro que há diferenças culturais entre o “espaço pessoal” de cada um e existem, para além disso, sensibilidades individuais que devem obrigatoriamente ser respeitadas — há crianças que detestam ser tocadas ou abraçadas e outras que adoram —, mas é angustiante pensar que pode ser o medo a ditar esse afastamento, seja medo de um vírus, seja de um “predador”.

Dito isto, acredito mesmo que a maior parte de nós está desejosa de voltar a abraçar e a estar próximo e que, mal seja seguro fazê-lo, vamos atirar com a máscara ao ar e andar a dar abraços pela rua!

Espero que esse dia chegue depressa porque estou a ficar farta da covid-19.

Beijinhos e abraços!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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