A Boa Feminista lê a Má Feminista

Se ser mulher cansa, ser feminista cansa muito mais porque sentimos que temos sempre que estar à altura, responder, bater o pé, encher o peito de coragem e enfrentar o patriarcado a cada afronta, pequena ou grande.

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Miguel Bruna/Unsplash

Ler A Má Feminista (de Roxane Gay, no original Bad Feminist, que ainda não se traduziu por cá) começou a parecer uma conversa entre amigas, assim uma espécie de pen pal sem a parte da resposta que segue no correio para ser lida umas semanas depois. Gay escreve precisamente sobre a tal falta de coerência do feminismo para se assumir má feminista. Ei! O feminismo não é perfeito, e não há mal nenhum nisso. I hear you, Roxane, I hear you… 

Vamos lá tentar focar-nos no que nos aproxima e não no que nos separa, enquanto vamos sucumbindo ocasionalmente a um ou outro guilty pleasure. A mim parece-me uma boa estratégia. Se ser mulher cansa, ser feminista cansa muito mais porque sentimos que temos sempre que estar à altura, responder, bater o pé, encher o peito de coragem e enfrentar o patriarcado a cada afronta, pequena ou grande. Ora, este é um trabalho interminável e rompe muitas solas de tanto bater o pé. A dada altura é mesmo difícil manter o espírito, sucumbes ao cansaço e simplesmente deixas que te abram a porta do carro sem reclamar.

De facto, o encontro com o feminismo é transformador, embora tenha um senão: mergulhar de cabeça no lago cristalino do feminismo, que às vezes se assemelha a um autêntico lodaçal, pode ser mais difícil do que umas ocasionais sessões de psicanálise que têm o objectivo de arrancar as raízes de todo o mal que assola o ser. Estas raízes são fortes, muito fortes, e o máximo que se consegue é mesmo levantar a terra e expor o órgão da planta (perdoem a metáfora mulher-terra-natureza, mas por favor deixem-me abusar dos estereótipos que sempre me facilita um bocadinho o discurso). O resultado é uma fractura exposta. Ou várias.

Nós, mulheres entradas e quase de saída dos trintas (ó década gloriosa!), olhamos para as jovens de hoje, quase empoderadas desde a nascença, e não podemos deixar de pôr um olhinho lá atrás e estremecer perante o quadro sombrio de relação amor-ódio com todos os tiques patriarcais da sociedade, todos os momentos impróprios e abusivos que não soubemos reconhecer, toda a falta de esperteza a enfrentar os lobos que se tornariam fantasmas, e a terrível, terrível arrogância de achar que o feminismo simplesmente já não era necessário; afinal, estávamos um degrau acima das gerações de mulheres analfabetas e submissas que nos precederam e éramos tãããooo livres que nos podíamos comportar tal e qual como os homens, embora fôssemos incapazes de reconhecer as consequências que daí advinham (Olá, preconceitos de género! Por aqui?).

Isto tudo para dizer que A Boa Feminista precisa de se perdoar e esquecer as humilhações que infligiu a si própria numa altura em que havia poucos modelos a seguir, e os que havia não lhe diziam particularmente nada (e que tal formarmos um clube?). Talvez venha daí, desse embate com o nosso eu não-tão-feminista-assim do passado, a má relação de muitxs com o feminismo, mais do que dos mitos modernos que pintam quadros de mulheres que odeiam homens, são feias e se vestem particularmente mal (acho que não é preciso ser feminista, e nem mulher, por sinal, para reunir tais características, pois não?). Mas por mim, antes ser boa do que má, porque é preciso uma feminista ser boa consigo própria para poder ser boa com todas as outras. Acho que a isto se chama empatia, sentimento que fica do outro lado da ponte do ressentimento. Mas isso são outros quinhentos e assunto para uma nova conversa.

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