A propósito de um artigo de Mário Vieira de Carvalho: afinal como é?

Sem percorrer exaustivamente o brilhantismo do artigo aqui publicado, não posso deixar de tornar pública a pergunta que se impõe, deixando de lado protocolos e a simpatia que ambos os citados me provocam para dizer: “Afinal como é, Graça?”, ou mesmo “Afinal como é, António?”.

O texto aqui publicado por Mário Vieira de Carvalho (MVC) – professor universitário, investigador e musicólogo, e ex-secretário de Estado da Cultura – é um ‘monumento’ de cristalina análise e de finíssimas limpidez, assertividade e simplicidade (no sentido com que Marivaux dizia que esta encobre uma grande complexidade), que só por ignorância ou má fé se não vê o que ele diz: está à frente do nariz, como à frente do mesmo está o cheiro nauseabundo de uma peste que se instalou no sector da cultura. Começando por nos colocar no epicentro da coisa com a constatação de que foi preciso uma pandemia para revelar em toda a sua dimensão a situação confrangedora em que se encontram desde há décadas as artes do desempenho ou artes do espetáculo em Portugal, MVC clarifica que os males sistémicos do falhanço de décadas de “apoio às artes” (…) não tem somente a ver com os montantes irrisórios distribuídos periodicamente por um certo número de agentes culturais através da Direção-Geral das Artes e/ou dos institutos que a precederam. E realça que isso decorre em boa parte de uma atitude negligente: o sistema foi instituído para assegurar a “qualidade” dos agentes a apoiar. [Mas] a avaliação da “qualidade” tem sido delegada em júris “independentes”, nomeados pelo Estado, que lava daí as suas mãos.

De facto, estamos num momento crucial, “irrepetível”, em que os Estados europeus são convocados a gizar estratégias de recuperação e desenvolvimento para a próxima década, sustentadas por recursos financeiros extraordinários colocados à sua disposição. A cultura em geral e o campo das artes em particular não podem ficar para trás. Mas, exigir mais dinheiro, acenando com 1% (ou mais) do PIB, de nada serve, se for para fazer mais do mesmo. É necessária e urgente uma radical mudança de paradigma. E este, muito resumidamente, começa por dois pilares: pôr fim à precariedade, quer do emprego artístico, quer do apoio às estruturas com provas dadas para assegurar, com contratos a médio e longo prazo, um verdadeiro ‘Serviço Nacional de Cultura’ (chamo-lhe eu assim, SNC) no caso das artes cénicas (teatro, dança e música, pacoviamente ‘anglicanadas’ pelo ‘mainstream’  bem (pouco) pensante, como performativas no meio de outras que com elas nada têm a ver); e fazê-lo tendo em conta a enorme rede de Teatros, Cine-Teatros e Auditórios, configurando-os para serem, essencialmente, centros de residência de estruturas artísticas, distribuídas de uma forma equilibrada por todo o país, pois, como diz, não se sabe se existe uma estatística europeia de equipamentos dessa natureza com e sem estruturas residentes de produção artística, mas, a existir, Portugal figurará nela muito provavelmente no fim da lista: como aquele país em que a abundância de equipamentos mais tem crescido na razão inversa das oportunidades de emprego artístico gerado…

Sem percorrer exaustivamente o brilhantismo do artigo, salto sobre o demais argumentário fundamentadíssimo nas linhas dele e no conhecimento do terreno [1], lembro eu que a actual ministra da Cultura se apresentou com um discurso deste próximo, tendo vindo a adiar e recuar demasiado tempo, demasiadas vezes para que os sobressaltos da pandemia cheguem para o justificar. Aliás, no que toca à concretização de contratos-programa com as estruturas deste património imaterial e capazes desse tal SNC, secundou o que o próprio António Costa anunciara em pré-campanha num almoço no Grupo “Os Fenianos do Porto”. E, assim mesmo sabendo eu que “é mais fácil a uma covid-19 passar pelo fio de uma agulha (de uma ‘injecção de capital’ no sector financeiro, ele sim ‘subsidiodependente') do que a cultura entrar no reino da decência de uma política estruturante e estruturada”, não posso deixar de tornar pública a pergunta que se impõe, deixando de lado protocolos e a simpatia que ambos os citados me provocam para dizer: “Afinal como é, Graça?”, ou mesmo “Afinal como é, António?”.

[1] Enquanto secretário de Estado da Cultura, MVC percorreu literalmente todo o país e ouviu todas as estruturas, tendo organizado um novo sistema que José António Pinto Ribeiro, sucessor de Isabel Pires de Lima, a então ministra, destruiu de uma penada, sem que fosse sequer testado. Mesmo sem ter havido um ‘golpe de Estado’ (ou houve?), mesmo sem ter mudado o Governo de então.

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