É-se racista quando se permite que o racismo continue

Pergunto-me se não teria sido mais importante conhecer, reflectir e debater alguns aspectos ligados ao colonialismo na escola, nas aulas de História, do que a Lei das Sesmarias e outras que tais.

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"Ninguém nasce a merecer mais ou menos que ninguém. Todos podemos ser agentes anti-racismo e dar o nosso pequeno contributo" daniel rocha

Era o meu primeiro ano enquanto psicóloga e trabalhava numa associação de solidariedade e desenvolvimento local em bairros sociais. Sou então atendida num café do bairro e oiço o dono do estabelecimento dizer a uma criança negra: “Vá, vai-te lá embora.” E a criança foi. Fiquei surpreendida, mas confesso que, inicialmente, nem associei o episódio a racismo. Só me dei conta do que estava em causa quando o dono, vendo a minha perplexidade, se justificou dizendo: “Sabe, eles mataram o meu irmão em África.”

Esta é a parte em que adoraria dizer que intervim em favor da vítima, que me insurgi na defesa dos direitos de uma criança, que contra-argumentei o injustificável. Mas, escolhi justamente este episódio em particular, para vos contar que fiquei sem reacção. Nem sei se esta criança terá compreendido o motivo pelo qual não foi atendida. Se entendeu, não sei como se terá sentido. Eu fiquei, mais tarde, com a sensação que, com o meu silêncio, “escolhi” sem querer o lado do opressor. Assim me senti eu. Terá ela sentido o mesmo?

A maioria das pessoas considera que o racismo é uma atitude, crença ou comportamento. Mas não é! O racismo é intrinsecamente institucional. Essencialmente é uma hierarquia socioeconómica criada, há meio milénio, para justificar a desvalorização, desumanização, exploração, violação e homicídio por via da escravatura. Há 500 anos não existia o conceito de raça. Como veio a ser comprovada pela ciência, esta invenção (raça) carece de base biológica, fisiológica e genética. Nesta conjectura, qualquer um de nós, não precisa de ser um/a racista para ser racista. É-se racista, quando se permite que o racismo continue, ainda que de forma passiva. Foi o meu caso, naquele dia no café.

Mais recentemente, em 2019, ao assistir à peça de teatro Os Filhos do Colonialismo do Hotel Europa, tomei conhecimento que, na então província de Angola, existia o “registo de nascimento de indígena”, no qual constava um desenho de um bebé com rabo de macaco. Não tenho palavras para descrever a repugnância que senti, causada pela imagem projectada. Pergunto-me se não teria sido mais importante conhecer, reflectir e debater alguns aspectos ligados ao colonialismo na escola, nas aulas de História, do que a Lei das Sesmarias e outras que tais.

Lutar contra esta forma de discriminação de seres humanos, implica compreender melhor a sua origem e como tem sido possível a continuidade da sua propagação ao longo dos anos, de forma mais ou menos subtil. Nesse sentido, e em matéria de educação, é importante que todas as crianças e jovens no espaço escolar conheçam bem a História, tenham formação e oportunidade de reflectir e debater questões relacionadas com os direitos humanos e interculturalidade, e que beneficiem de um treino explícito de competências socioemocionais, nomeadamente no âmbito da consciência social. Compreender o que os outros sentem, ser capaz de se colocar no lugar do outro e apreciar e interagir positivamente com diferentes pessoas e grupos devem ser aspectos trabalhados, de forma continuada, ao longo dos anos de escolaridade.

Conhecer a história é importante! Não como forma de expiação e recriminação por aquilo que aconteceu, mas para reduzir os erros cometidos no passado e preparar melhor o futuro. Para evitar a banalidade do mal de que nos fala a Hannah Arendt, muitas vezes associada à institucionalização de uma prática de discriminação, neste caso secular. Para, de uma vez por todas, se parar de dizer que não há racismo em Portugal! Não fazer nada para compreender as origens do racismo e não promover activamente estratégias para o evitar, é silenciosamente apoiar o sistema que sustenta esta opressão de uma parte da população.

O problema não está tanto nas componentes abertamente racistas e que são facilmente detectáveis. Está nas subtis, nas que passam despercebidas. Como para mim teria passado naquele dia no café, não fora o dono do mesmo ter-se “justificado” pela sua atitude. Ninguém nasce a merecer mais ou menos que ninguém. Todos podemos ser agentes anti-racismo e dar o nosso pequeno contributo. Como? Estando mais conscientes, defendendo e promovendo activamente os direitos humanos e dando o exemplo aos mais novos. Porque ninguém cometerá erro maior ao não fazer nada, porque “apenas” pode fazer muito pouco!

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