Precisamos de cidades compatíveis

Apoiar financeiramente a reconversão do mercado do alojamento local em mercado de rendas acessíveis concilia uma oferta sem procura com uma procura sem oferta.

O turismo teve um impacto descarado na economia e no urbanismo das nossas cidades. A recuperação económica dos últimos anos, quer no emprego, quer na construção, por exemplo, é indissociável do capital que o país conseguiu obter como destino de férias seguro e como local de investimento (por muito que esse emprego fosse precário e o investimento em Lisboa e Algarve ficasse a dever alguma coisa aos vistos gold). É uma constatação. Portugal foi descoberto. E foi moda.

A explosão de procura, num contexto de grande mobilidade e de democraticidade das ligações aéreas, teve como consequência a multiplicação de hotéis e, particularmente, de alojamentos locais que ou ocuparam os edifícios devolutos dos centros históricos abandonados ou expulsaram, por força do aumento do preço das rendas, os residentes para zonas mais periféricas. O processo de “gentrificação” ocorreu por todo o lado, porque o modelo assente na oferta turística é uma indústria padronizada.

A pandemia teve um efeito devastador na indústria da aviação e em toda a actividade turística. É um facto: o número de novos alojamentos locais abertos em Abril passou para níveis de 2014 e as taxas médias de ocupação em Maio rondavam os 5% em Lisboa e os 3% no Porto.

Embora por vezes muito discutível, o alojamento local teve o condão de fazer com que muitos edifícios em ruína fossem recuperados, o que de outra forma não aconteceria. Aos programas de reabilitação urbana faltou-lhes agilidade, rapidez e preços competitivos. Acresce que a reabilitação se destinava, sobretudo, aos quarteirões, ao passo que o que faziam os privados era recuperar casa a casa, edifício a edifício.

Apoiar financeiramente a reconversão do mercado do alojamento local em mercado de rendas acessíveis — com o Estado a comparticipar a 50% a diferença entre a renda paga e a renda recebida, como prevê o projecto de decreto-lei que o Governo quer aprovar em breve — concilia uma oferta sem procura com uma procura sem oferta. Acrescentar a isso a garantia de alojamento para pessoas em situação de emergência já se parece com uma política de habitação.

A pandemia pode ter como efeito o regresso dos residentes aos centros das cidades (as câmaras de Lisboa e do Porto já o fazem de alguma forma) e o surgimento de um mercado de arrendamento ­menos especulativo e mais ético. O deslumbramento acabou; precisamos de cidades compatíveis. É assim que as cidades se corrigem e se regeneram. 

Sugerir correcção