Negar o racismo é racismo

Enquanto se continua a pôr em causa se há racismo, se há racismo estrutural ou se a sociedade portuguesa é racista anula-se o espaço para a responsabilização, para a reflexão e discussão sobre a mudança, e silenciam-se as vozes das pessoas vítimas de racismo, as suas vivências e as suas propostas para o progresso da Igualdade entre todas e todos os cidadãos em democracia. Negar o racismo é distração e sabotagem.

Após a execução racista de Bruno Candé Marques começou desde logo a cantiga usual: “agora tudo é racismo”, “isto não é racismo”, “o idoso só estava mal disposto”, “acordou do lado errado da cama” ou “talvez se tenha enganado porque vê mal” (verdadeiro comentário). Excluindo o negacionismo deliberado e oportunista, utilizado como arma política e chamariz mediático de profissionais do racismo como André Ventura, este nível delirante de negação é perturbador e é também um sintoma do racismo estrutural que gangrena a sociedade de forma mais ou menos velada para os que dele beneficiam.

O medo que o grupo racial, com o qual os negacionistas se identificam, possa ser associado a um crime racista é de tal ordem que todas as recriações e revisionismos contorcionistas do que se passou naquela Avenida de Moscavide são possíveis, pouco importam os inúmeros testemunhos públicos e as declarações da família da vítima. Como explica Herbert Blumer em Race Prejudice as a Sense of Group Position (1958), quando falamos de racismo estamos a falar de uma relação entre supostos grupos raciais e não de uma relação interpessoal entre os membros desses grupos, ou seja, o pânico moral que sentem os negacionistas em relação à sua reputação não acontece porque se identificam com o indivíduo que matou Bruno Candé Marques, mas com o grupo racial ao qual ele é suposto pertencer.

Assistimos, desde logo, a um movimento de solidariedade de grupo cujo objetivo é o de salvar a sua reputação, porque se Portugal não é racista, se não somos racistas, um dos nossos também não pode ser. Se considerassem Bruno Candé Marques como fazendo parte do seu grupo as reações seriam distintas, e não teríamos outro clássico racista que é a desculpabilização do ato criminoso através da inculpação da vítima, que afinal “não era nenhum santo” – como se houvesse uma licença para matar, uma exceção à lei da pena de morte quando essa morte é a de um corpo negro. Negar o racismo é racismo.

Esta estratégia de defesa da sua reputação tem custos elevados para as pessoas racializadas e para a sociedade no seu todo. Negar o racismo é ser cúmplice, através da utilização de um dos eficazes instrumentos, da preservação de um sistema supremacista que beneficia há séculos uns em detrimento de outros. Negar o racismo protege os opressores, vulnerabiliza as vítimas, deslegitima o combate antirracista e “enfraquece a resistência”, como defende Teun A. van Dijk em Denying Racism: Elite Discourse and Racism (1992). Enquanto se continua a pôr em causa se há racismo, se há racismo estrutural ou se a sociedade portuguesa é racista anula-se o espaço para a responsabilização, para a reflexão e discussão sobre a mudança, e silenciam-se as vozes das pessoas vítimas de racismo, as suas vivências e as suas propostas para o progresso da Igualdade entre todas e todos os cidadãos em democracia. Negar o racismo é distração e sabotagem.

Quando se nega a existência do racismo estrutural, está-se a apagar a História de Portugal e o seu passado esclavagista e colonialista, está-se a apagar a História das pessoas racializadas, está-se a negar-lhes um qualquer tipo de ancestralidade, de herança histórica, de transmissão, sem terem direito a “avós”, como se fossem seres fora do espaço e do tempo. Negar o racismo é alienação.

Quando se nega o racismo estrutural está-se a apontar o dedo de forma racista à responsabilidade coletiva de negros e ciganos por fazerem parte da população mais pobre, com menos acesso a trabalho, educação, alojamento e saúde, mais discriminada pelas instituições e violentada pela polícia. Como se fossem, de novo, seres fora do espaço e do tempo, fora dos condicionamentos da sociedade onde vivem. Negar o racismo é omissão de auxílio.

A perversão da chamada cegueira cromática, outra manifestação da negação do racismo, que se verbaliza através dos típicos “eu não vejo raças”, “eu não vejo cores” e, portanto, sou um bom cidadão, é que ao não ver a cor de Bruno Candé Marques também não se pode compreender a sua vida e a sua morte e a influência que a tal cor que não veem exerceu nesse percurso letal. Será assim tão complexo compreender que raças biológicas não existem, que fazemos todas e todos parte da raça humana – ou outras belas frases que se queiram inventar –, mas que as raças existem enquanto construção social e política hierarquizante? Não existe qualquer problema em falar de cores, tal como não há qualquer problema em dizer que um indivíduo tem os olhos castanhos e outro os olhos azuis, o problema está na construção de hierarquias entre essas cores. Se não se vê a cor, não se vê a hierarquia e não se vê o racismo, e se não se vê o racismo nada é feito para o combater. Negar o racismo é perpetuar o racismo.

A negação do racismo é um privilégio mascarado de falsa ingenuidade que resulta em violência psicológica e política, pois corresponde a dizer na cara das pessoas racializadas que a sua vivência em sociedade é uma quimera, que aquilo que sentem é falso. Não se pode confundir o seu universo com o universal. A negação do racismo é tão ridícula como seria ridículo se uma pessoa cega nos dissesse que um objeto que conhecemos de forma distinta não existe porque nunca o viu. Negar o racismo é uma negação de existência.

Negar o racismo é racismo.

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