A política e as profissões

Depois da saga infeliz com a Ordem dos Enfermeiros de há um ano, pré-covid-19, parece que as baterias se voltarão agora para a Ordem dos Médicos. Porquê? Porque não pactuou com desorientação, falta de clarividência e de estratégia adequada para o combate à Pandemia covid-19.

Será que foi sugerido em sessão parlamentar a revisão do estatuto da Ordem dos Médicos? Ou terá sido apenas um murmúrio de fim de tarde? As notícias terão sido algo nebulosas, os objectivos pouco claros, mas, no contexto da actuação do Ministério da Saúde e da actual correlação de forças políticas, a lógica e a oportunidade percebem-se.

O tempo do balanço e avaliação crítica das políticas seguidas na Saúde, incluindo o combate à Pandemia, aproxima-se, será inevitável e necessário. Provided, isto é, desde que haja oposição política seriamente preocupada com o País e não com a gestão de eventuais favores políticos.

A actuação da equipa ministerial na Saúde tem revelado a dominância do preconceito ideológico sobre a análise inteligente e factual da realidade, um déjà vu que a Prudência mandaria que não fosse ignorado; je connais l’histoire, como costuma dizer uma amiga nossa que ainda não esqueceu o rigor de outras paragens. Ou o velho aforismo: a melhor defesa é o ataque.

Depois da saga infeliz com a Ordem dos Enfermeiros de há um ano, pré-covid-19, parece que as baterias se voltarão agora para a Ordem dos Médicos. Porquê? Porque não pactuou com desorientação, falta de clarividência e de estratégia adequada para o combate à Pandemia covid-19, porque vem pondo a nu os falhanços e omissões da Política de Saúde e porque que tem sabido manter coerência, dignidade, defesa do espírito de serviço que é marca da Medicina, sem compromisso da exigência que a política tantas vezes tende a ignorar.

Se a memória é uma maldição, ela é, também, uma necessidade e uma tentação! A afirmação do poder político na área da Saúde teve sempre um denominador comum: receio dos médicos – combater o Poder Médico tem sido slogan mobilizador usado da esquerda à direita e tem servido para a uma desvalorização efectiva do estatuto profissional não só dos médicos, mas também dos outros profissionais de Saúde. Bem como as tentativas de marginalização das suas organizações, nomeadamente as Ordens que tendem a situar-se acima de filiações partidário-sindicais e cuja independência sempre assustou o Poder. Daí a tentação de as atacar, reduzir o seu âmbito de intervenção, o recurso recorrente às acusações de corporativismo, o seu efectivo distanciamento no processo de decisão e agora, ao que parece, por tentativa de subversão do seu estatuto e autonomia via iniciativa parlamentar.

Bem congeminado, mas mal reflectido! A última coisa que este ministério e este Governo precisam é de efectivamente virarem os profissionais de Saúde contra si!

Há anos, também em momento conturbado, o meu saudoso Mestre Prof. Jaime Celestino da Costa dizia-me com notável lucidez: a Ordem dos Médicos tem dois objectivos fundamentais: defender os Médicos da Sociedade e a Sociedade dos Médicos.

Formulação simples, directa, resumindo com clareza a essência da missão desta Ordem profissional cujo património ético e moral honra a Medicina, os Médicos e a Sociedade.

Fará ainda sentido quase três décadas depois, em que tanta coisa mudou no País e na realidade da Medicina?

Obviamente que sim, mas analisemos alguns factos.

A organização da Medicina mudou e hoje, 30 anos depois, é mais complexa, multidisciplinar e multiprofissional, a constituição das equipas de Saúde essenciais ao sucesso da Medicina Clínica é um exemplo desta realidade. Parceria e cooperação estreita numa evolução dinâmica produtiva, mas nem sempre isenta de alguma conflitualidade, reduziram protagonismo médico, mas preservou-se o primado e privilégio da Responsabilidade Médica.

A funcionalização progressiva dos médicos (inevitável?), quer no sistema público como no privado, em detrimento do estatuto tradicional de profissional autónomo e independente, criou nos decisores político-administrativos a ilusão de um poder discricionário em áreas cuja realidade prática não vivenciaram. E a Defesa da Cidadania da Pessoa Doente e dos seus direitos, que pressupõe informação objectiva, parceria efectiva na decisão terapêutica o conceito de empowerment do doente, o qual confere novas dimensões e exigências à relação empática médico-doente, absolutamente crucial , essa defesa não se compadece com a rigidez de horários pré-determinados e fixos, nem com as limitações decididas administrativamente e à revelia da opinião médica.

E, finalmente, a accountability pública da Profissão Médica, percebida como a necessidade de fazer bem e prestar contas, como resposta à maior exigência social e ao dever de Competência e Profissionalismo, a qual é património moral e ético invejável dos médicos portugueses.

Houve erros médicos? Certamente, e alguns com consequências trágicas como se verificou recentemente e os media informaram no cumprimento da sua missão. Infelizmente acontecem, como em toda a actividade humana, em Portugal e no Mundo, mas tudo tem que ser feito para diminuir a sua ocorrência, avaliar com isenção as responsabilidades e actuar em conformidade. E nesse caso de há meses que chocou a opinião pública, a Ordem foi célere no reconhecimento de inoperância de estruturas próprias, na limitação do exercício profissional do médico envolvido e na resolução rápida do problema. Mas levou mais longe a preocupação com o futuro, ao solicitar a cooperação de Magistrado a nomear pelo Conselho Superior da Magistratura para melhoria da qualidade e eficácia da sua actuação disciplinar.

Há, contudo, uma área na qual a Ordem dos Médicos e porventura as outras Ordens profissionais terão que se debruçar rapidamente e promover a sua implementação: a Recertificação Profissional, que é a confirmação da competência profissional após a conclusão da Formação pós-graduada para os médicos, e que é uma lacuna na nossa organização. Foi um combate no qual participei durante o mandato do anterior bastonário, mas que infelizmente não chegou a bom porto. Não é fácil, afronta interesses e comodidades, suscita perplexidade a quem associa imediatamente a mais um exame, mas é um combate necessário.

Seria isto que o Ministério da Saúde tinha em mente quando sugeriu ao Parlamento a nomeação de personalidades independentes que monitorizassem a Ordem dos Médicos? Ou apenas um exercício de sedução a potenciais aparatchicks partidários que, dada a composição parlamentar, talvez se devessem chamar comissários e que actuariam como correias de transmissão vigilantes e atentas às necessidades correctas do Poder e contra a independência da Ordem dos Médicos?

A Recertificação Profissional é um assunto sério, que não deve pactuar com jogos rasteiros de política; é uma necessidade e a sua implementação é uma urgência. Constitui sustentáculo indispensável da Meritocracia e do Dever de Competência Profissional, deveria ser uma prioridade e contribuiria para o prestígio e eficácia da Medicina Portuguesa. Não era certamente isso que o Governo teria em mente, provavelmente apenas proteger-se do que tudo aponta ser a falta de planificação estruturada para o Outono que aí vem, que personalidades com prestígio e responsabilidade avisaram, e para o qual não se descortinam planos e contingências que deveriam ocupar prioritariamente o tempo tão escasso de reflexão de quem decide.

Isso, e como recuperar os atrasos em Saúde, nas outras patologias que foram preteridas na campanha covid-19. Mais três meses de paragem serão catastróficos para a Saúde dos Portugueses.

Será mesmo necessário um Provedor de Saúde, como parece que também se terá murmurado? E porque não para a Educação, outra área tão fundamental para o futuro? E já agora, que estamos na onda, porque não para a Gestão Bancária e Economia e Finanças, onde não faltam comentários sobre o falhanço da regulação oficial na prevenção de desastres conhecidos, ou na Arquitectura, onde tanto atentado ao património cultural e bom gosto tem ocorrido pelo País?

Provedores, urbi et orbi, a nova solução para a defesa dos cidadãos perante a prepotência e poder das Profissões? E, porque não, também para o bem-estar e sobrevivência dos animais de companhia, perante a tragédia em Santo Tirso?

Deixo a interrogação: como deverão ser nomeados? Pelas maiorias parlamentares da ocasião? Pelo Presidente da República após consenso político-partidário?

E uma pergunta: não haverá questões mais relevantes para análise e discussão?

Talvez não, como parece deduzir-se do plano de recuperação nacional, documento importante que deveria merecer discussão séria, apesar de me parecer demasiado exaustivo comportando tudo e mais alguma coisa. O que se percebeu pelo debate parlamentar do Estado da Nação – e como foi desolador! – é que ninguém efectivamente, com excepção do Prof. Costa Silva, parece saber do que se trata, como enquadrar a sua concretização e que prioridades definir.

Permita-me, caro leitor, uma clarificação e uma explicação.

Deve um médico, que ainda por cima teve responsabilidades académicas e ainda mantém alguma dessa actividade, falar de outros assuntos excepto daqueles sobre os quais tem obrigação de conhecer e dever de opinião fundamentada? 

Há a outra dimensão – a da cidadania empenhada –, que procura ser informada e participar sem preconceitos na discussão no espaço público que é a essência da democracia liberal. Esse tem sido razão e fundamento para os meus artigos, que amavelmente o editor tem aceitado.

Depois, como já referi, a memória é uma maldição! Revejo os planos, as discussões de décadas anteriores e a incapacidade de decisão. Lembra-se do TGV? Primeiro, era a linha Lisboa-Madrid, integrada nas redes europeias, o que faria todo o sentido, para passageiros e mercadorias; depois, perante clamores públicos, vieram o Porto para Vigo, depois Sines para escoamento do porto e acho que até se falou do Algarve para ligar a Sevilha; já eram quatro ou cinco linhas, com autarcas a exigir que o TGV parasse nas suas cidades... e o que ficou? Uma linha do Norte que depois de vultuosos investimentos continua longe da velocidade e segurança desejadas. Sines, o grande porto Atlântico, porta de entrada para a Europa, um segundo Roterdão, mas sem as vias de escoamento indispensáveis às mercadorias, e sem um pipeline para abastecimento do aeroporto e da capital, como se viu com a greve dos motoristas! Falta-nos o Reno – de facto, não há um grande rio navegável no Alentejo que atravesse a Europa! – e ainda não construímos a linha de caminho de ferro nem a via rápida para o escoamento dos produtos está terminada! Quanto se gastou nisto, nos estudos, na indecisão? E quanto perdeu o País?

Novo aeroporto? Há 15 anos teria permitido um verdadeiro hub transcontinental e transformado a TAP numa companhia com verdadeira dimensão. Onde está? Quanto dinheiro se gastou? Agora, pensaram e sabem ao menos que fazer da TAP? Numa época de reajustamento estratégico da aviação civil e redefinição de prioridades, como nos iremos situar? Vai continuar a saga Montijo, com todos os seus riscos ambientais e insuficiências? Ah! Se pudéssemos fazer mais um bom negócio e ensinar a Europa, comprando aeroportos em segunda mão como fizemos com os comboios!!!

Porque não fomos capazes de decidir e actuar? Essa é para mim a questão fundamental e que importa corrigir, se não, como diria a nossa amiga, je connais l’histoire!

Depois, quais são os planos do Estado, necessariamente configurados pelas consequências económicas da Pandemia? Não só do Governo socialista, mas dos outros, os projectos que foram ficando na gaveta sem se saber exactamente porquê? Não acredito que seja um deserto, tem que haver certamente um pensamento depurado pela estrutura do Estado, ao longo dos anos, pois governar e administrar pressupõem também... ter um Pensamento prospectivo! Como é que se inter-relacionam com o Plano do Prof. Costa Silva? Onde estão os mediadores entre a Ciência do Planeamento e a sua efectivação prática? E quais as linhas de orientação? No meu espírito vem um lamento: porque é que o primeiro-ministro não lhe pediu em 2016 um plano? Porque esperou pela crise terrível e pela janela de oportunidade europeia? Sempre no fio da navalha...

O governo alemão elaborou um plano para a década em Novembro de 2019, 35 páginas duma clareza meridiana – será que já teriam informações secretas da pandemia e das suas consequências? Ou simplesmente... fizeram o que também é parte da missão de governar, pensar o Futuro?

A questão da Energia – bem longe do meu múnus – surpreendeu-me. Li com atenção o documento, as respostas de responsáveis que conheço pessoalmente e respeito profissionalmente e ouvi com atenção especialistas que respeito intelectualmente pela seriedade e objectividade das suas análises. Será que o primeiro-ministro e o líder da oposição estudaram o problema e têm pensamento estruturado? Desanimou-me, melhor, entristeceu-me, a pouca elevação da controvérsia que aflorou no debate parlamentar, entre rendas garantidas e fossilização imposta ex-catedra!

Espero bem que em Outubro tenhamos já planos coerentes, lógicos, exequíveis e com uma máquina do Estado capaz de dar seguimento à sua execução. E que tenhamos uma Oposição informada, que pense, estude e tenha contrapropostas que ajudem o País, e não sirva apenas para promoção dos seus líderes. Faltam dois meses ... e com as férias no meio!

Acredita o prezado leitor que os governos ditos frugais não têm planificação bem estruturada? Da minha vida profissional conheço bem a Holanda e também a Suécia e a Alemanha, que felizmente não está oficialmente no grupo. O planeamento, a capacidade de decisão e execução são notáveis e exemplares. E a França, que desde o general De Gaulle sempre teve um diálogo institucional entre o Poder e a Ciência tantas vezes mediado discretamente por personalidades que foram Compagnons de la Libération? E o Presidente Macron, que instituiu uma comissão de sábios com dois ou três Nobel para definir um plano coerente?

Em artigo anterior referi uma realidade: nos países pequenos e com menores índices de desenvolvimento, não chega fazer bem, é preciso fazer mais e melhor – excellence is tolerated – e por isso era necessário um debate aberto às diferentes competências, para além das fidelidades políticas e partidárias, porque o desafio é enorme e a oportunidade única.

Se houver tempo e se a direcção editorial o aceitar, voltarei a uma discussão mais aprofundada sobre a Saúde, sobre a qual o Prof. Costa Silva escreveu duas páginas e meia, com algumas ideias com as quais concordo e, como outros, temos defendido há anos e que deveriam estar a suscitar a discussão empenhada e informada que o seu importante trabalho bem merece!

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