Entre acusações de rebelião e um casamento, Henry e Elaine preparavam-se para uma vida separados

Quatro dias antes do casamento, Henry e Elaine estavam detidos por acusação de rebelião em Hong Kong. O casamento aconteceu, mas as complicações legais também.

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Tyrone Siu

Para o Dia de S. Valentim deste ano, Henry Tong deu à mulher, Elaine To, um álbum de fotografias. Contém as memórias da vida dos dois em conjunto: o primeiro encontro, há seis anos; um beijo em frente a um mural pró-democracia; os anéis de casamento tatuados no anelar, simbolizando um laço que não se apaga facilmente; e o casamento de 2019, onde ele jurou que “nem uma bomba nuclear os poderia separar”.

O álbum não menciona as 50 horas que Henry e Elaine passaram na prisão em Julho de 2019, quatro dias antes do casamento. Detidos durante um protesto pró-democracia em Hong Kong, o casal foi mantido em diferentes celas numa esquadra, separados por um longo corredor e uma grande parede. Sem saber se iriam sair a tempo do casamento, o casal tentou encurtar a distância gritando através das celas. “Não nos conseguíamos ver. Mas se gritássemos alto o suficiente, conseguíamos ouvir a voz um do outro”, diz Elaine.

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No início de 2020, Henry, 39 anos, passou mais de um mês a criar o álbum em segredo, durante os poucos momentos em que não estava com a esposa. Ele queria que Elaine, 42, tivesse algo que a fizesse lembrar-se dele caso ficassem separados outra vez, dessa vez durante anos.

Quase um ano depois de terem sido detidos, os recém-casados foram julgados por rebelião, uma ofensa cuja pena pode ir até dez anos de prisão. O casal falou com a Reuters nas semanas antes de irem a tribunal conhecer o seu destino. E na passada sexta-feira, ficaram a saber o que lhes ia acontecer.

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Desde Junho de 2020, mais de nove mil pessoas foram detidas durante os protestos que levaram milhões de manifestantes à rua com cinco exigências, incluindo a de mudar a classificação dada aos protestantes — “amotinados” —, e uma democracia plena em todos os territórios sob a alçada da China. Mais de 650 foram acusados de rebelião, uma das acusações mais graves. Os casos foram atrasados devido à pandemia de covid-19, mas, agora, os acusados estão finalmente a conhecer os veredictos — semanas depois de a China ter intensificado drasticamente o seu colapso, através da imposição de uma nova legislação de segurança nacional em Hong Kong, que inclui pena perpétua para alguns crimes políticos.

O gesto de Pequim exacerbou preocupações entre muitos dos residentes de Hong Kong no que toca à liberdade no território, incluindo a de expressão e a de imprensa. Críticos dizem que a lei marca o final do modelo de governação de Hong Kong, “um país, dois sistemas” — que lhe permitiu um alto nível de autonomia desde que passou da alçada britânica para a chinesa, em 1997. A China diz que a nova legislação apenas sinaliza um minoria de “desordeiros” existentes na cidade, e a chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, chamou aos opositores da lei “inimigos das gentes de Hong Kong”.

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Manifestantes à porta do tribunal. Tyrone Siu
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Lam defendeu a repressão feita aos manifestantes no ano passado, que saíram à rua para se opor a uma lei que permitia a extradição de pessoas de Hong Kong para a China continental. “Devo avisar todos novamente: não quebrem a lei, especialmente os mais jovens”, disse, em Maio. “Há um preço muito alto para os que quebram a lei.”

Muito mais velhos do que os adolescentes que são um símbolo dos protestos, Henry e Elaine insistem que estavam meramente a prestar socorro aos que eram atingidos com gás naquele dia de protestos em Julho último. O casal, que tem um ginásio no bairro Sheung Wan, em Hong Kong, disse-se inocente. Afirmaram que nunca foram para as filas dianteiras, e nunca agiram violentamente ou ilegalmente.

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Manifestações contra a lei da extradição Tyrone Siu

O advogado do casal argumentou, em tribunal, que não existiam provas directas que indicassem que Henry e Elaine estavam na rua quando o alegado motim aconteceu; gravações de câmaras de vigilância mostram o casal num beco perto do local, abandonando a área. O testemunho judicial mostrou que apenas guarda-chuvas, equipamentos de protecção, equipamento médico e dois walkie-talkies foram apreendidos na sua detenção.

A procuradoria disse em tribunal que, apesar de não haver evidências que mostram que o casal estava presente no local onde as manifestações aconteceram, eles possuíam objectivos semelhantes aos manifestantes. Os seus equipamentos e o facto de estarem a fugir da polícia suportavam a acusação de que estariam envolvidos nos protestos, afirmou a procuradoria. O advogado do casal contra-argumentou, dizendo que Henry e Elaine estavam a evitar o gás lacrimogéneo e não a fugir da polícia.

Henry disse que nem ele, nem Elaine, imaginavam que alguma vez fossem detidos. “Nunca pensamos que teríamos de procurar um advogado, ou alguém para tomar conta dos nossos cães.”

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Elaine chorou algumas vezes quando falou da separação que não tinha dúvidas de que estava para chegar — e inquietou-se sobre o que poderia acontecer aos três cães, que são como filhos para eles, uma fonte de preocupação e amor. Mas ela disse que acreditava que era a sua obrigação erguer-se pelo futuro de Hong Kong. “Quando olho para trás, o que me fez feliz?”, questionou-se. “Acredito mesmo que apesar de ter sido detida, não me arrependo de me ter levantado. Apesar de ter medo de ser presa, não me arrependo.”

Atravessar fogo e água juntos

Durante os protestos, os manifestantes deram a Henry a alcunha Fu Tong, que significa “atravessar a água”. Elaine foi apelidada Dou Fo, que significa “atravessar o fogo”. Literalmente, os nomes dados aos dois significam que, juntos, poderão atravessar água e fogo.

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Estiveram entre os primeiros a ser acusados de rebelião durante os protestos do ano passado, juntamente com a jovem de 17 anos Natalie Lee. O casal também enfrentou acusações de posse de aparelhos radiofónicos sem uma licença válida.

Henry e Elaine referem que não conheciam Natalie antes da detenção. A polícia estava a disparar gás lacrimogéneo no momento em que encontraram a jovem num beco, com dificuldades em respirar e praticamente incapaz de abrir os olhos, disseram. Depois de a ajudarem a lavar os olhos com água salgada, o casal disse que tentou sair do local. Os três foram detidos pela polícia em frente a uma vedação de arame farpado. Natalie, que também se declarou inocente, rejeitou comentar quando foi contactada pela Reuters.

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A detenção na esquadra foi um dos momentos mais difíceis da relação do casal, disseram. Desde 2014, quando começaram a namorar, sempre foram inseparáveis. Até ao momento em que manifestantes paralisaram as principais ruas da cidade para exigir democracia plena.

Tudo o que Henry conseguia pensar, enquanto estava detido, era no casamento, apenas a alguns dias de distância. “O mais assustador da detenção foi o medo de não me conseguir casar a tempo. Os polícias diziam-nos que não havia um plano para nos garantir uma fiança”, disse. “A primeira coisa que eu disse ao meu advogado foi para garantir que conseguíamos uma fiança para sairmos e casarmos.”

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Elaine mostra a sua colecção de figuras. Tyrone Siu

Assim que conseguiram a tal fiança e estavam, finalmente, em liberdade, ficaram perplexos com todas as coisas com que tinham de lidar — confortar os cães, pedir desculpa aos clientes por cancelar as aulas no ginásio, encontrar um fato para o Henry vestir no tribunal.

Ao acordar, no dia antes de serem libertados, estavam nervosos com a ida ao tribunal pela primeira vez. Até que viram a cena à porta do tribunal.

Mesmo com um tufão a aproximar-se da cidade e chuva torrencial, centenas de apoiantes estavam à porta do tribunal, alguns cobertos por sacos de plástico, para demonstrar solidariedade. Muitos seguravam cartazes onde se lia “não há desordeiros, apenas tirania” e cantavam incessantemente “libertar Hong Kong, a revolução do nosso tempo” — até que todas as 44 pessoas que foram a tribunal nesse dia conseguiram fiança.

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Henry e Elaine não conheciam todas as pessoas que naquele dia se manifestaram, e muitas das pessoas também não os conheciam. “[O que nos aconteceu] não teve nada a ver com eles, mas mesmo assim eles ficaram lá e esperaram por nós em plena tempestade”, disse Henry, enquanto limpava as lágrimas. “A cena mexeu connosco. Deixamos de nos sentir nervosos assim que entramos no tribunal.”

“Vou continuar a amar-te para sempre”

Quatro dias mais tarde, Elaine vestiu o seu vestido branco num pequeno salão de casamentos. Apenas esperavam que quatro pessoas, incluindo duas testemunhas, viessem ao casamento. Henry não convidou a família porque tinham recebido ameaças de que alguém iria invadir e estragar-lhes o casamento.

Para surpresa do casal, dezenas de familiares, amigos e pessoas que nunca tinham antes conhecido apareceram no dia. Apareceram também jornalistas, que transmitiram em directo a cerimónia — como se se tratasse de um casamento real, e não de duas pessoas acusadas de um crime sério.

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“A impressão geral das pessoas de Hong Kong em relação aos criminosos é muito má, e rebelião é uma acusação muito grave, mas mesmo assim eles vieram. Isso mostra o amor deles”, afirmou Henry. “Estou muito emocionado e orgulhoso.”

Quando o casamento estava prestes a começar, um idoso desconhecido abriu subitamente a porta. E quando Henry e Elaine pensavam que ele ia interferir com o casamento, o desconhecido deu-lhes os tradicionais envelopes vermelhos com dinheiro, como prenda. “Parabéns, parabéns”, dizia.

Em vez de trocarem alianças, o casal tatuou um par de luvas de boxe, com o estilo ornamental mexicano de caveiras — uma noiva e um noivo —, nos seus braços morenos e musculares, agora ligados pelas linhas que já lhes serviam de anel. Era um símbolo de como se conheceram, numa aula de boxe tailandês, e se apaixonaram. Até que a morte os separe.

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“Se quiseres apagar esta tatuagem, precisas de passar por muito sofrimento. É muito semelhante ao que acontece com o casamento”, disse Henry. Depois de assinar os papéis, cada um fez um pequeno discurso enquanto segurava a mão do outro. “Ainda que existam alguns obstáculos no caminho, finalmente tornei-me na Sra. Tong. Ultrapassarei qualquer turbulência contigo”, jurou Elaine, enquanto limpava as lágrimas.

“Não é fácil encontrar alguém com os mesmos ideais, valores, e tão disponível a ultrapassar altos e baixos contigo em tempos caóticos… Vou continuar a amar-te para sempre”, disse Henry, antes de se beijarem.

Apenas uma semana depois da cerimónia, cartazes com a sua foto de casamento e com as palavras “trash teens” (adolescentes lixo, numa tradução literal) — um termo depreciativo usado contra protestantes pró-democracia — foram colados junto do ginásio do casal e em postes de electricidade desde Sheung Wan até um distrito a mais de uma milha de distância. Mas nenhum deles levou o assunto a sério, garantem. Na verdade, Elaine ri-se acerca das palavras: “Significa que ainda somos jovens.”

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“Nunca estás sozinho”

O julgamento do casal estava marcado para Março, mas foi adiado devido à pandemia. Os 20 dias que o tribunal demorou a ouvir o caso excedeu a estimativa inicial em dez dias. Sharron Fast, docente de Direito dos Media na Universidade de Hong Kong e que já leccionou direito criminal, diz que a lei da rebelião da cidade está atrasada e não é reformulada desde 1976.

“Os elementos da ofensa dizem que assim que três ou mais pessoas numa manifestação contra a lei cometam certos actos, pode-se dizer que há uma “violação da paz”, e são acusados de estar comprometidos com uma rebelião”, diz Fast. “Todos os presentes são condenados como parte da rebelião, independentemente do papel que tenham desempenhado.”

Ela disse que um grande número de casos relacionados com protestos mostram que alcançar justiça pode ser complicado. “É difícil imaginar que todos estes indivíduos vão receber um processo justo, no sentido em que os julgamentos são muito dispendiosos a nível de tempo, e acontecem numa base de caso para caso”, disse. O Departamento de Justiça de Hong Kong e o gabinete de Carrie Lam não responderam às questões enviadas pela Reuters acerca do processo judicial.

Por vezes, Henry culpa-se pela situação legal complicada em que o casal se encontra. “Sou-lhe muito grato. Nunca foi ideia dela. Eu sou mais teimoso”, referiu. “Ela não me culpou por estarmos na situação em que estamos.”

A pressão psicológica do ano passado deixou Henry assombrado por pesadelos. Na noite antes de um julgamento, estava sombrio. “É como ver o meu próprio funeral, ver pessoas a assistirem à minha morte”, disse. “Só que eu não estou morto. É muito difícil.”

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O caso também prejudicou o negócio de ambos. O casal diz ter perdido dois terços do salário devido a diferenças políticas com os seus clientes. “Muitos dos clientes que nos restam são muito compreensivos. Eles disseram: ‘Está tudo OK. Ainda que estejam a ser julgados, nós vamos continuar a vir’”, contou Elaine.

Sempre que se sentem derrotados, eles pegam nos convites de casamento e cartões que receberam e lêem as mensagens que os convidados escreveram. Um dos seus favoritos é um desenho que três crianças fizeram de Elaine vestida de noiva e Henry com um fato e um capacete amarelo, a cor associada aos protestos. Eles penduraram-no à entrada do ginásio.

“Obrigada por lutaram pela justiça para as gerações mais novas. Nunca estarão sozinhos, têm-nos a nós. Feliz casamento! Orgulhosos do Sr. e Sra. Tong!”, escreveram as crianças. “Eles lembram-nos que temos de continuar”, afirmou Henry. Acerca da nova lei de segurança imposta por Pequim, acrescentou: “Ainda que Hong Kong já não tenha futuro, ainda estou esperançoso. Não estamos sozinhos.”

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Nos dias antes do veredicto, o casal esperou no ginásio, onde passaram maior parte dos seus dias construindo um sonho juntos. Pediram a um amigo para lhes fazer companhia. Puseram as luvas de boxe e dois sacos de plástico com o logótipo do ginásio, Wild Gym, dentro de mochilas. “Não é o local que tornou tudo especial, mas o tempo que passamos juntos tornou-o especial”, disse Henry.

Também relembraram momentos de corridas e os passeios dos cães, que adoptaram há três anos: Ah Mui (irmã, em português), um poodle; Fa Fa (flor) e Cho Cho (relva), dois rafeiros. Como pais preocupados, mencionaram os cães repetidamente, quando falavam da possível vida na prisão. Preocupavam-se que deixassem de comer, tal como aconteceu quando ficaram detidos na esquadra.

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Fizeram planos para os cães. A mãe de Elaine, que os apoiou durante todo o processo legal, ficaria encarregada de Ah Mui, uma vez que o poodle tem problemas de alergias de pele que precisam de cuidados redobrados. Fa Fa e Cho Cho são dois cães de porte grande, e o casal receava que a mãe de Elaine se magoasse a passeá-los. Por isso, planearam enviá-los para o hotel para animais de um treinador de cães, onde ficariam com outros cães para facilitar a ansiedade provocada pela separação. Elaine tatuou os três cães no braço direito, para o caso de ser detida. “Pelo menos posso ver os meus cães.”

A mãe de Elaine, 60, disse que às vezes desejava voltar atrás no tempo e mudar tudo. Ela percebeu que eles ficaram muito calados em casa à medida que o veredicto se aproximava — às vezes sentados num silêncio ensurdecedor —, mas também não se atrevia a perguntar muita coisa. Ela quebrou, soluçando, quando começou a falar da filha e do genro. “A mamã apoia-vos imenso”, relembra ter-lhes dito. “Não importa o que aconteça, vou suportar-vos aos dois e tomar conta dos vossos cães.”

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Henry desejava que o casal se pudesse manter forte. “Espero que, independentemente do quão má a situação fique, não percamos a esperança. Espero que o nosso amor permaneça nestes tempos caóticos”, disse. “Estas palavras não são só sobre o nosso casamento, mas também por Hong Kong.”

Na sexta-feira, cerca de cem pessoas reuniram-se à porta do tribunal para apoiar o casal. Lá dentro, Elaine chorava enquanto Henry estava sentado em silêncio, fixando uma parede. Num instante, todos os medos do casal acerca de uma vida separados atrás das grades desapareceram. O juiz anunciou que tinham sido ilibados da acusação de rebelião. Assim como Natalie Lee. O casal foi declarado culpado de uma ofensa menor, a de possuir um radio wireless sem permissão, e foram multados em 1300 dólares cada um. Estavam livres.

Elaine e Henry choraram abraçados. Depois, Elaine abraçou a mãe, pedindo desculpa pela preocupação que lhe causou. “Eles são boas pessoas”, disse Ann. “Não fizeram nada de errado.” Henry disse que iriam imediatamente para casa para tomar conta dos cães, e Elaine garantiu que iam começar a desempacotar o equipamento de ginásio para voltar ao trabalho.

Nos dias anteriores à sentença, o casal tinha folheado o álbum que Henry fez para Elaine. Na última página, Henry escreveu: “Foram felizes para sempre.” Como em todos os contos de fadas.

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