Migrantes: o problema não é nosso

Os migrantes não são terroristas, estão eles próprios aterrorizados e estão a fugir de uma realidade há muito distante no Ocidente desenvolvido. Empatia é o mínimo que se pede.

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Luís Forra/Lusa

Stateless é uma série de 2020 produzida, entre outros, por Cate Blanchet, e como tudo aquilo em que Cate Blanchet toca transforma-se em ouro, não deixámos de assistir a mais um testemunho de uma das maiores actrizes australianas da actualidade.

A acção decorre maioritariamente num campo de detenção de migrantes na Austrália, entre o desespero e a esperança de quem procura uma vida melhor, longe das torturas, violações e assassinatos certos nos países de origem, e a interrogação e ignorância de uma nação incapaz de lidar com a chegada constante de migrantes às suas margens.

A páginas tantas, Ameer, migrante afegão e recém-chegado ao campo de detenção, incrédulo, pergunta aos outros detidos qual a razão da sua permanência por tempo indeterminado nestas instalações. A resposta, uníssona, ecoou em gargalhadas pelo campo: “Porquê? Então não estás a ver? Somos todos terroristas!”

E porque todos somos terroristas, este que vos escreve incluído se me lembrar de chegar a terra estrangeira sem documentação, a detenção por tempo indeterminado é a primeira e única arma ao dispor das nações soberanas para lidar com quem lhes é estranho.

No sistema de detenção australiano, os migrantes não têm nomes. Ao invés, são-lhes atribuídos letras e números, os códigos do seu processo, deste modo retirando-lhes a essência mais profunda do ser: o nome, o seu nome, o meu nome. Incapazes de provar as suas origens, os migrantes não são apenas apátridas, são objectos, não-pessoas, e como objectos são esquecidos, ignorados, negligenciados.

Mas estes migrantes têm nomes: Javid, Rosna, Ameer, Farid. E em cada nome uma história, não apenas de dor mas também de sonhos, o sonho de trabalhar e construir um futuro no país de acolhimento. 

Recentemente, 21 migrantes oriundos de Marrocos foram interceptados na ilha do Farol, em Faro. Não tinham nem papéis nem documentos. Por falta de espaço nas instalações do SEF, foram detidos na prisão do Linhó, em Cascais. Dizem as autoridades ser este o procedimento para garantir a sua segurança. E, para garantir a sua segurança, toca de algemar os migrantes e conduzi-los como criminosos a um estabelecimento prisional onde a sua situação será revista de oito em oito dias. 

Até, rapidamente, deixarem de ser notícia. Entretanto, será preciso averiguar a verdadeira razão para a sua presença em terras lusas.

Mas não há nenhuma razão, nem verdadeira nem falsa, não há nenhum plano nem nenhuma ameaça enquanto o desespero, a fome, o sofrimento e a morte obrigarem homens, mulheres e crianças a atirarem-se ao mar alto em barcos de borracha sobrelotados, preferindo deixar tudo para trás, vidas passadas onde o futuro já foi possível, empregos, amigos, família para arriscar as vidas em travessias impossíveis mas em tudo melhores ao inferno que ficou para trás.

E desde quando se prende alguém no sentido de garantir a sua segurança? Não nos atirem areia, por favor, quando é o medo e esta insegurança a razão para retirar a liberdade a quem nos é igual mas não é, é diferente na língua e na cor da pele, pelo menos aos olhos dos carcereiros.

A razão para a ausência de documentos de identificação? Sem papéis que provem a sua proveniência, os migrantes podem requerer asilo e assim impedir o regresso à morte.

Repita-se a ideia: os migrantes não são terroristas, estão eles próprios aterrorizados e estão a fugir de uma realidade há muito distante no Ocidente desenvolvido. Empatia é o mínimo que se pede. E sim, há espaço para todos e continuará a haver espaço para todos enquanto a razão primordial das ondas de migrantes continuar a existir. 

Porque não uma ou mais reportagens sobre as razões por detrás de tão perigosas travessias, fatais para milhares de pessoas no cemitério do Mediterrâneo? Onde está o interesse dos governos ditos desenvolvidos em resolver as guerras, iniquidades e atrocidades na raiz da fuga anual de milhões? Onde estão o acolhimento, a integração e a compreensão para quem vem de mãos estendidas e ao alto a pedir ajuda? Porquê o medo e a desconfiança? Porquê o incitamento ao medo da parte dos media?

Quem assim chega a outra terra não é, nunca foi nem será um criminoso, um ilegal, mas sempre alguém à procura de socorro. 

Globalmente, existem hoje 70 milhões de migrantes. Metade destes são crianças.

E enquanto as nossas instituições insistirem em acusar, julgar e deter quem mais precisa e quem mais vulnerável está, ao mesmo tempo que populações inteiras repetem o verbo de um problema que não é nosso, mas é, será apenas uma questão de tempo para que uma guerra, um terramoto ou, então, uma grande depressão nos transforme naqueles migrantes naquele barco na ilha do Farol, incrédulos ao espelho, também nós de joelhos a pedir para que não nos mandem de volta, por favor poupem-nos a vida.

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