Desisti

Precisava de ver e abraçar os meus. Pôr os pés na minha terra. Recentrar o meu mundo. Ver o meu mar, fazer-lhe perguntas, e esperar pelas respostas. Precisava de me rir antes de voltar a chorar.

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Criança sudanesa, de dois anos, a ser alimentada num hospital Stringer

Desisti. Na minha 12.ª missão encontrei o meu limite e desisti. Foi das decisões mais dolorosas da minha vida. Fiquei destroçado, com o coração em pedaços tão pequeninos que julguei não ser possível alguma vez voltar a juntá-los todos. Senti que estava a ir contra tudo o que eu mais amo, mais idolatro, e que tem moldado a pessoa que eu gostava de ser. Senti que estava a trair a paixão da minha vida, e ainda assim parecia-me o mais correcto.

Desisti da minha missão na Faixa de Gaza porque não me senti útil, porque não me pareceu adequada a estratégia médica em prática, e porque não consegui sequer comparar às zonas mais necessitadas do planeta onde já estive. O que eu fiz foi revisitar as memórias do rapazinho que eu era há dez anos, quando parti com a cara banhada em lágrimas e a mochila cheia de sonhos para a República Democrática do Congo. “Oferecer os meus conhecimentos médicos a quem mais precisa” foi o que me fez ter a coragem de entrar no avião. E agora sentia que não estava a ser fiel às minhas memórias e às minhas convicções, e por isso desisti.

Fi-lo educadamente, mas não foi com bons olhos que me olharam. Mas desisti por sentir que não estava a ser honesto com os dois extremos da ajuda humanitária que mais me interessam respeitar: os beneficiários que recebem os cuidados de saúde, e os dadores que oferecem o seu dinheiro para que se salvem vidas em zonas do planeta que por vezes nem sabem que existem. E sei que sou apenas um vector no meio destes dois mundos que se tocam através de meu trabalho e da minha paixão.

Perguntaram-me se eu queria partir de imediato para o Iémen. Disse que não. Sentia que não tinha estabilidade emocional para ir. Odiei-me por tomar essa decisão. Acho que nunca fui tão decisivo, em termos de vidas salvas, como no Iémen. E saber que não tinham um médico anestesista-intensivista nas semanas em que me pediam para ir traduz-se em muita mortes, por eu ter dito que não, mas eu tinha de lamber as minhas feridas. E agora tinha de me curar de ter desistido de Gaza, e tinha de me curar de ter recusado regressar ao Iémen onde fui mais médico do que nunca.

Precisava de ver e abraçar os meus. Pôr os pés na minha terra. Recentrar o meu mundo. Ver o meu mar, fazer-lhe perguntas, e esperar pelas respostas. Precisava de me rir antes de voltar a chorar. Estava muita frágil, e não sou de ferro.

Passadas três semanas recebi um email: “Sudão do Sul?” Achei que não havia nada melhor para curar o meu desgosto humanitário do que regressar para as profundezas de África. Ninguém se questiona sobre o propósito da medicina humanitária nas planícies onde serpenteia o rio Nilo. A missão na Faixa de Gaza seria a última de dois anos em missão, antes de voltar para os cuidados intensivos no Porto. Não podia fechar este ciclo com este trauma. Agora tinha os encantos dos ensinamentos africanos para recuperar e solidificar a minha paixão eterna. E assim foi. Reencontrei-me com a simplicidade, com a beleza, com a alma de um povo que me inspira a cada sorriso, numa terra onde parece não haver motivo nenhum para ser feliz, mas onde os sorrisos transbordam as almas bonitas. Senti a música no meu coração, ressuscitei a vontade de escrever, e descobri a terapia através da poesia ao brincar com as palavras que os ensinamentos da África Negra me proporcionam.

Mas houve uma poesia que eu nunca imaginei que iria escrever. Chamaram-me para ir ver um rapazinho de quatro anos. Tinha sido mordido por uma cobra, na cabeça e no pescoço. Foi trazido em braços durante seis horas pela mãe. Estava gravemente doente pela toxicidade do veneno da cobra. Os meus saberes serviram para o estabilizar, e depois concentrei-me em ensinar aos enfermeiros a correcta vigilância dos sinais vitais. Sinto que a vida desta criança depende da minha capacidade de colmatar a doença mais assassina em África: a ignorância. Há enfermeiros nestas zonas do planeta que não sabem contar a frequência cardíaca. Não sabem contar. É esta a dimensão do meu desafio. A mãe do rapaz assiste à minha preocupação e aos meus ensinamentos, a sofrer em silêncio.

Eu agarro-me aos livros para estudar tudo o que está ao meu alcance sobre mordeduras de cobra, porque pouco sei sobre o assunto. Reavalio a criança e reforço os meus ensinamentos. As horas passam. Volto ao hospital depois do jantar, e repito a dose com a equipa da noite. Ele está muito doente, mas estável. Estou orgulhoso do meu trabalho. Deixo bem claro quais os parâmetros que devem fazer soar os alarmes, para me irem chamar a casa, pelas lamas difíceis de caminhar durante a noite. Acordo de manhã e vou a voar para o hospital para ver a criança. Os sinais vitais continuam críticos mas melhorados. Os enfermeiros fizeram um excelente trabalho. Tenho uns segundos de contentamento, até constatar que o edema da cabeça e do pescoço aumentou estrondosamente, e com minúcia diagnostico que está já com dificuldade em respirar por compressão da traqueia. Cruzo os olhos com o cirurgião perguntando-lhe se conseguia fazer um furo na traqueia para que ele pudesse respirar melhor. Tecnicamente parece já ser tarde de mais. Fico ao lado do rapazinho a vê-lo morrer.

Morreu do veneno da cobra, morreu da pobreza por dormir no chão, morreu porque eu não antevi que isto pudesse acontecer. A mãe tinha um olhar sem vida. Não verteu uma lágrima. Aceitou. Enrolou-o num pano africano colorido e colocou-o ao ombro como se fosse um saco de batatas. Escondi-me no exterior do hospital e aninhei-me de cócoras com o olhar fixo nas minhas botas enlameadas para poder chorar à vontade. Um enfermeiro sul-sudanês apercebe-se e vem dar-me uma palavra de conforto: “Doutor, você fez tudo o que podia fazer!” Isto ainda me faz chorar mais, porque não sabia se era verdade. Tivera eu antecipado no dia anterior, furava-lhe a traqueia quando era possível, e talvez aquela mãe não tivesse de o levar ao ombro, mas sim pelo seu pé. Chorei porque são demasiadas as crianças que morrem quando podiam ser salvas, chorei porque talvez pudesse ter feito melhor, e chorei mais ainda porque me parecia que era a única pessoa que estava a chorar, incluindo a própria mãe.

Há um paradoxo gigante na minha reflexão que tanto me angustia como me traz serenidade. Aqui aceita-se a morte, porque ela é tão mais frequente. Aqui é normal ver uma criança morrer. Aqui todas as famílias têm uma história de uma criança que morreu. Eu gostava que eles percebessem que não é normal, mas também gostava de aprender a aceitar melhor a morte. Parece uma contradição, mas não tem de o ser: valorizar a vida até ao último esforço, mas aceitar a morte com paz e tranquilidade.

Foi muito duro desistir, mas orgulho-me por ter sido fiel aos meus ideais. Foi muito duro ter perdido esta criança nas mãos, mas aprendi a maior lição da minha vida. Escrevi um poema sobre a morte desta criança, e sigo o meu caminho, seja ele qual for.

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