O maior problema de António Costa

Era numa sólida frente de combate pelo futuro que deveríamos encontrar António Costa, e não envolvido na mesquinhez do calendário parlamentar...

António Costa aproveitou o último debate do estado da nação para ensaiar um dos seus habituais golpes de poker político, propondo ao PCP e ao Bloco uma nova edição da “geringonça” e colando ao PSD a etiqueta de “velhos do Restelo” – a pretexto do seu cepticismo relativamente à questão do hidrogénio –, embora tenha sido com o mesmo PSD que, no dia anterior, aprovara o fim dos debates quinzenais (proposto, aliás, pelo mais acabado desses “velhos": Rui Rio).

A que se deve tão célere contradição de comportamento político? Precisamente, e naquele instante, à necessidade para Costa de compensar a tão polémica concordância com o fim dos debates quinzenais, passando-os para bimestrais – o que confirmava uma prolongada cumplicidade com Rui Rio em matéria de costumes políticos e rituais parlamentares. Era a esse “bloco central” de interesses tácticos que Costa pretendia contrapor – muito mais para salvar as aparências do que por convicção – a estratégia política da “geringonça”. Só que Costa se habituou a este “poker" como se tudo decorresse em segredo e à margem do escrutínio do eleitorado, confiando em demasia na sua habilidade e encarando com cinismo a credulidade dos outros.

Ora, outro episódio revelador aconteceu antes da cimeira europeia em que foi aprovado o histórico plano de resposta à pandemia. Foi quando António Costa deixou muita gente perplexa com a sua visita ao primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, chefe do Governo europeu com o pior registo de atentados contra o Estado de direito democrático.

O líder socialista recusou qualquer gesto de demarcação de valores políticos com o seu anfitrião, insistindo em separar esses valores dos interesses económicos (como se isso fosse possível, ao nível das convicções ideológicas e do projecto europeu que se pretende construir). O primeiro-ministro português prestava-se, portanto, à interpretação de que, para o seu Governo, o que interessava acima de tudo, fosse qual fosse o preço político a pagar, era o dinheiro. E assim menosprezava a importância do gesto solidário da Europa – o mais amplo de todos, inspirado pelo voluntarismo e lucidez de Merkel e Macron, apesar das tristes peripécias de bastidores que ainda persistem.

Como era fundamental termos nesta altura um António Costa idêntico àquele que soube orientar e inspirar o país durante o confinamento (mau grado os percalços e perdas de rumo que se seguiram). Perante algo historicamente tão relevante para acordar a consciência europeia, as reacções portuguesas foram previsivelmente dominadas pela indiferença, a desconfiança e o cepticismo não apenas face à Europa mas contra nós próprios – contra a nossa incapacidade atávica de construir um país mais próspero, justo e igualitário, paralisados por essa sombra fatalista que nos persegue desde sempre. Ora, era numa sólida frente de combate pelo futuro que deveríamos encontrar António Costa e não envolvido na mesquinhez do calendário parlamentar – que, pense-se o que se quiser, não pode passar de quinzenal a bimestral sem prejuízo do escrutínio dos eleitos. Sem querer entrar em especulações psicanalíticas, o maior problema de António Costa não será, afinal, ele próprio?

P.S. – “É uma reviravolta: uma renúncia histórica da Europa à austeridade e uma maneira de afrontar a crise económica diametralmente oposta à de 2008. (…) O dogmatismo neoliberal que tanto mal fez à Europa e às suas populações, em particular no Sul, foi finalmente corrigido”. As palavras são de Pablo Iglesias, líder do Podemos e vice-presidente do Governo espanhol, a propósito do plano de relançamento europeu. E podem ser lidas com proveito pelos seus confrades portugueses.

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