Numa universidade nova o medo deve morrer de velho

Sugiro à reitoria que se preocupe menos com o alarme público que os casos destas últimas semanas concitaram e que antes considere a hipótese de discutir e resolver alguns dos problemas de colegialidade e democraticidade aqui identificados. Tanto mais que, quero crer, a cultura do silêncio e do medo numa universidade pública como a nossa tem os dias contados.

Nas últimas semanas, a Universidade Nova de Lisboa tem estado envolvida numa sucessão de casos que afectam a sua imagem, a ponto de pairar sobre a mesma o espectro de uma crise reputacional. Neste contexto, esperar-se-ia que o reitor e restantes dirigentes da instituição esclarecessem as situações em causa e reagissem em conformidade. Infelizmente, não é isso que tem acontecido. Os trinta e dois mil euros devolvidos pelo director da NOVA SBE à universidade não resolvem o problema de conflito de interesses em que o mesmo se encontra. E todos estaremos certamente de acordo que o preço da nossa reputação institucional a tanto é superior. 

Mas, ainda mais preocupante do que a falta de uma reacção adequada às situações em causa, é o facto de a reitoria vir a público sugerir a existência de uma qualquer intentona que conspira contra a nossa universidade. Esta sugestão parece-me errada enquanto estratégia de comunicação, faz acreditar que não se aprende com os erros cometidos e não ajuda à liberdade crítica que a NOVA declara querer fomentar. De resto, é sobre as condições de liberdade crítica da vida interna da minha universidade que gostaria de me ocupar neste artigo.

Nas nossas sociedades democráticas, o princípio de autonomia da universidade é consagrado de modo a que o ensino e a investigação sejam protegidos de pressões externas, ao mesmo tempo garantindo-se que a academia seja um espaço de liberdade crítica. Em tese, esta forma de protecção é assegurada pelo menos por duas vias. Por um lado, o financiamento público da universidade garante, dentro do possível, que a investigação e o ensino não estejam subordinados a interesses privados. Por outro lado, o facto de os reitores e directores das instituições públicas de ensino superior serem eleitos pela comunidade académica liberta-os do dever de obediência ao ministro do momento.

No caso da NOVA, o Orçamento do Estado vem assegurando à universidade o mínimo de condições que lhe permitem agir de forma independente em relação a todo e qualquer tipo de interesses privados. Há um problema de subfinanciamento crónico do ensino superior público em Portugal, mas a subordinação da NOVA SBE a interesses empresariais privados não se explica em função disso – e, na verdade a despeito da propaganda mecenática, está até por esclarecer em que medida operações como a da construção do campus de Carcavelos não oneram economicamente o interesse público e beneficiam interesses privados. 

No caso da NOVA, creio ser também certo que a equipa reitoral não se encontra na dependência da agenda política do momento. Se é verdade que a política de financiamento à investigação seguida pelo actual Governo português tem procurado condicionar, de forma cada vez mais directa, a prática científica dos investigadores, tal sucede no âmbito de um processo mais geral de apologia da rentabilidade da ciência, apologia que a reitoria da NOVA vinha já fazendo por vontade própria.

Onde está então a crise do princípio de autonomia e, com essa crise, o enfraquecimento das condições favoráveis à liberdade crítica? Está na ausência de colegialidade e democraticidade que marca a vida da universidade e das suas faculdades. Existem várias razões para esta ausência, mas da mesma é desde logo sugestivo que os estatutos da universidade e da maior parte das suas escolas reservem inúmeros privilégios de elegibilidade para uma quantidade muito reduzida dos seus membros. É verdade que nem todas as faculdades da NOVA chegaram ao requinte de inventar órgãos como o “Conselho Restrito de Catedráticos”, mas, se o enquadramento jurídico vigente (o chamado RJIES) não convida propriamente à democraticidade, a forma como a NOVA em geral o aplica torna tudo muito pior. A título de exemplo, veja-se que existem faculdades da NOVA em que a formação de uma lista para um Conselho Cientifico com 15 membros obriga à presença de sete catedráticos. Numa faculdade em que existem cerca de 25 professores catedráticos, a possibilidade de existir mais do que uma lista depende assim dos humores de cerca de 1/15 avos do seu corpo eleitoral.

Situações como esta permitem um grande défice de pluralidade interna nos organismos dirigentes da NOVA. Este défice favorece objectivamente a indolência que torna possível situações de inimputabilidade como as que recentemente sucederam. Favorece também que os assuntos mais relevantes da vida da universidade sejam curados em circuito fechado. E autoriza que decisões relevantes sejam tomadas sem qualquer legitimidade substantiva que as suporte. Por exemplo, a grande maioria das decisões de fundo que constam do plano de valorização imobiliária da NOVA, que está sob alçada do vice-reitor Ferreira Machado, estão ausentes do programa de acção que fez eleger o reitor João Sáàgua. A autonomia da universidade redunda assim na autonomia dos dirigentes universitários agirem a despeito da comunidade universitária que os elege.

Sugiro à reitoria, pois, que se preocupe menos com o alarme público que os casos destas últimas semanas concitaram e que antes considere a hipótese de discutir e resolver alguns dos problemas de colegialidade e democraticidade aqui identificados. Tanto mais que, quero crer, a cultura do silêncio e do medo, alimentada por processos disciplinares e outras formas de controlo da pluralidade inerente a uma universidade pública como a nossa, tem os dias contados. Numa universidade nova o medo deve morrer de velho.

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