A Grândola que Amália quis gravar, não quis gravar e finalmente gravou

Num raro encontro entre Amália e José Afonso, em 1984, no Clube dos Jornalistas, ela perguntou-lhe: “Zeca, acha que eu canto bem?” E ele, segundo testemunhas (citadas no livro), disse: “Se a senhora não canta bem, quem é que canta bem neste país?” Grândola já não os desunia.

Entre as várias polémicas que na música rodearam Amália (não ser fadista e cantar “óperas”, cometer a “heresia” de cantar Camões, etc.), encontra-se o facto de ter gravado Grândola vila morena, de José Afonso. Que seria oportunismo, que a cantava mal. As explicações para tal episódio foram dadas pela própria, à época, e Vítor Pavão dos Santos já as reproduziu no livro Amália e Os Poetas (Bertrand, 2014), mas o recente livro Amália, Ditadura e Revolução, de Miguel Carvalho (D. Quixote, 2020), veio trazer mais uns pormenores e testemunhos a esta história.

José Afonso escreveu Grândola em 1964 em homenagem à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, como agradecimento por lá ter ido cantar e ter sido tão bem recebido. Em disco, o músico gravou-a em Cantigas do Maio (1971) e ao vivo estreou-a na Galiza (1972). Ora Amália, que já gravara duas canções de José Afonso em 1970, Natal dos simples e Balada do sino, com orquestra dirigida por Paul Gerard (nome artístico do canadiano Dennis Farnon, que chegou a morar em Cascais e a trabalhar com Fernando Tordo ou Carlos do Carmo), ouviu Grândola, gostou e pensou em gravá-la. Não o fez logo e, entretanto, Grândola tornou-se senha do 25 de Abril, o que a fez recuar, temendo que a acusassem de oportunismo. O que, aliás, veio a suceder quando enfim a gravação surgiu em single, logo em 1974 (o registo, com orquestra dirigida por Joaquim Luiz Gomes, terá ocorrido a 28 de Junho de 1974, data que consta das bobinas na Valentim de Carvalho). No lado B, foi incluído o popular Alecrim.

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Capas dos singles de Amália Grândola e Meu Amor é Marinheiro, editados em 1974

Qual a versão de Amália? Em entrevista à revista Plateia, a 1 de Março de 1976, citada no já mencionado livro de Pavão dos Santos, disse isto: “Eu gravei Grândola porque gostei muito dessa canção. Ouvi-a antes do 25 de Abril e gostei muito. Não por ser revolucionária mas por ser bonita. E disse ao [Rui] Valentim de Carvalho que queria gravar… Claro que veio o 25 de Abril e pus logo o projecto de parte, adivinhando o que as pessoas iriam dizer. Depois, numa festa [do Movimento das Forças Armadas] realizada no São Luiz, pediram-me para cantar esse número. A partir daí foi do próprio Valentim de Carvalho que começaram a insistir para que gravasse. Fui atrás do entusiasmo, não pensei e gravei mesmo. Claro que não tinha necessidade nenhuma de gravar a Grândola… Gostei da canção, não pensei, e pronto… Além de outras pessoas, o próprio autor não gostará que eu a cante… Mas não é minha obrigação, nem tenho feitio para isso, estar a pensar se os autores gostam ou não gostam. Quando gosto de uma cantiga, canto-a. Depois as outras pessoas são aquilo que são. E isso já não é comigo.”

Mas acabou por ser com ela, porque nem em França a deixaram em paz. O livro de Miguel Carvalho cita um articulista do Libération que, num regresso de Amália ao Olympia, e chamando-lhe “embaixadora de Salazar”, escreveu: “Para fugir ao esquecimento, não hesita em ceder ao oportunismo e à demagogia e interpretar Grândola, a canção-senha do 25 de Abril!” Curiosamente, na mesma Paris que lera tais acusações, a Grândola que Amália gravou em Portugal saiu em single, em 1974, com o subtítulo Chant des Partisans Portugais!

Voltando atrás na história, se Amália tivesse gravado Grândola antes da revolução, o disco teria passado como passou Natal dos simples: com aplausos e talvez algumas críticas. Mas o destino não o quis. “A ideia de gravar a Grândola foi do Rui Valentim de Carvalho, a Amália não queria”, diz a Miguel Carvalho o antigo director de A&R da editora, Mário Martins. E ele foi, com o fotógrafo Augusto Cabrita (que durante anos fotografou Amália), à procura de “um chaparro que tivesse altura decente para a capa do disco.” E assim ficou.

A pressão de seguir o “ar do tempo” levou a que a Valentim de Carvalho editasse também em single outros temas já cantados por Amália, como Meu amor é marinheiro (Manuel Alegre), com capa alusiva à revolução; Abandono, de David Mourão-Ferreira, já titulado como Fado Peniche; ou Trova do vento que passa, também de Alegre, gravado em Com Que Voz (1970).

Ouvida hoje, como deveria ter sido à época, a gravação de Grândola por Amália é digna, sóbria, soberba. Defende bem o original e trá-lo à terra, como faz também com Alecrim. Num raro encontro entre Amália e José Afonso, em 1984, no Clube dos Jornalistas, ela perguntou-lhe: “Zeca, acha que eu canto bem?” E ele, segundo testemunhas (citadas no livro), disse: “Se a senhora não canta bem, quem é que canta bem neste país?” Grândola já não os desunia.

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