Sérgio Ricardo, um violão partido e uma vida dedicada à música e ao cinema

1932-2020. Cantor, compositor e cineasta brasileiro, ligado aos alvores da bossa nova e à canção de protesto, Sérgio Ricardo morreu esta quinta-feira no Rio de Janeiro, com 88 anos, de insuficiência cardíaca.

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Sérgio Ricardo TATIANA ALTBERG/PÁGINA OFICIAL DE SÉRGIO RICARDO

Quando se fala no nome de Sérgio Ricardo, é habitual associá-lo de imediato a um episódio singular, ocorrido no III Festival de Música da TV Record, em 1967. Vaiado, não conseguindo fazer-se ouvir como queria, partiu o violão e arremessou-o à plateia, acabando por ser desclassificado. Mas Sérgio, na sua longa carreira ligada à música, à rádio, à televisão e ao cinema, foi muito mais do que isso e soube manter-se activo. Em 2019 lançou um livro de poemas e em 2020 ainda participou no projecto Sérgio Ricardo Memória Viva, criado para preservar o seu acervo. A morte interrompeu-lhe esta última aventura aos 88 anos, após internamento no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro.

Nascido João Mansur Lufti, em Marília, Estado de São Paulo, em 18 de Junho de 1932, filho de um libanês tocador de alaúde, ainda iniciou a vida artística como João Lufti, vindo mais tarde a adoptar o nome Sérgio Ricardo. Começou a estudar piano no conservatório da sua cidade natal, aos 8 anos, tocando depois em festas de amigos. Aos 17, mudou-se para São Vicente, e aí trabalhou na Rádio Cultura, como técnico de som e locutor, e aos 20 foi para o Rio, onde conheceu Tom Jobim, João Gilberto e Johhny Alf. Estudou orquestração, começou a compor e a cantar profissionalmente, e teve em 1958 o primeiro sucesso, quando Maysa gravou o seu samba-canção Buquê de Isabel.

Da bossa nova aos festivais

Nos alvores da bossa nova, acompanhou o movimento e foi até dos primeiros a gravar pela Odeon um LP associado ao novo estilo, A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo (1960). Mas o tema Zelão, aí incluído, já o empurrava para a canção de protesto. Ainda participou em 1962 no célebre Festival de Bossa Nova no Carnegie Hall de Nova Iorque, mas logo seguiu outro rumo. Ainda permaneceu nos Estados Unidos algum tempo, a cantar em bares, mas no regresso ao Brasil, em 1963, virou-se para o cinema. Realizou Esse Mundo é Meu, com música sua e montagem de Ruy Guerra, e compôs a banda sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha.

O ano em que lança o LP A Grande Música de Sérgio Ricardo, 1967, é o mesmo em que participa no festival onde partiu o violão. A história é contada, com pormenor, no livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello (Editora 34, 2003). Sérgio tenta defender a canção Beto bom de bola, não consegue devido à insistentes vaias da audiência, e acaba por desistir, com a cena que ficou célebre. Conta Zuza: “Visivelmente transtornado, ergue o violão e o arrebenta contra um pedestal. Em seguida, impulsiona o braço direito para trás e, numa atitude inimaginável, arremessa o violão quebrado à platéia.” Antes, ainda segundo Zuza, proclamara: “Vocês ganharam! Vocês ganharam! Mas isso é o Brasil não desenvolvido. Vocês são uns animais!”

O documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil (2010), que foi exibido no DocLisboa de 2010, na secção Heart Beat, dedica também vários minutos a este episódio, e logo na primeira parte do filme. A cena descrita é mostrada na íntegra, com Sérgio a pedir, sem sucesso, “um minutinho”, “caaaalma” e quase a implorar, antes de explodir: “Eu quero pedir aos que aplaudem e aos que vaiam um pouco de lucidez neste momento p’ra​​ poder entender o que eu vou cantar” (ele nem se ouvia a si próprio).

Mas os realizadores quiseram saber o que Sérgio Ricardo tinha a dizer, décadas depois. E ouvem-no dizer, calmo, que aquela fora uma reacção “extemporânea a descontrolada”, onde ele “era como um animal acuado”. Atribuindo tal catarse à época que então se vivia (“aguentar uma ditadura é uma coisa difícil”), não se mostrou, no entanto, arrependido, pelo contrário. “Não, nada. Eu não faria isso hoje porque acho que teria de atirar um cavaquinho, aquilo é coisa de garoto. Mas não ia atirar coisa nenhuma, porque estou tocando piano e atirar um piano ia ser impossível.”

A música ligada ao cinema

Entre o Festival de 1967 e o filme que o retratou anos depois, em 2010, Sérgio Ricardo continuou a participar em festivais, estreou a peça Sérgio Ricardo na Praça do Povo, dirigida por Augusto Boal (1968), e manteve-se ligado ao cinema, como realizador e compositor. Fora do Brasil, viu Geraldo Vandré cantar duas canções suas no Festival da Canção de Protesto, realizado na Bulgária. Gravou mais discos e, em 1974, rodou a sua terceira longa-metragem, A Noite do Espantalho, tendo dois músicos como actores: os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Também foi disco.

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A década de 1990 é já de celebração da sua obra, no Rio e em São Paulo. E em 1999, pelos 50 anos de carreira, no Theatro Municipal, por sugestão de Ricardo Cravo Albin, com Chico Buarque, Elba Ramalho, Alceu Valença, Zélia Duncan, Telma Tavares e Marina Lutfi, cantora e sua filha. Nos anos 2000, os seus filmes foram restaurados pela Cinemateca Brasileira e lançados em DVD. A partir desse trabalho de restauro, foi possível um outro: um espectáculo intitulado Cinema na Música de Sérgio Ricardo, que também foi editado em DVD, em 2019, a partir de uma gravação ao vivo com a participação dos cantores Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Dori Caymmi e João Bosco.

Nos dois últimos anos, Sérgio Ricardo lançou um livro com poemas que escrevera nos anos 80 e ainda assistiu (nele colaborando) ao arranque do projecto Sérgio Ricardo Memória Viva, criado com apoio da FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e do Instituto Itaú Cultural, para preservar o acervo da sua multifacetada obra artística.

A morte não o deixou ir mais além. E, ao saberem dela, foram vários os artistas e amigos (como Otto, Frejat ou Chico César) que recordaram nele “o eterno mestre” ou o “cidadão exemplar”, pelo papel que teve, por mais de uma vez, nas batalhas pelos direitos de autor dos músicos no Brasil.

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