Retrocesso no ensino das Humanidades

O que se tem verificado como tendência nos últimos anos é a progressiva desvalorização da Filosofia, que o exame nacional deste ano ostensivamente revela.

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Daniel Rocha

Escrevo este artigo no momento em que decorre mais uma época de exames nacionais, entre eles os das disciplinas que permitem o acesso ao ensino superior, nomeadamente Filosofia, que aqui me traz. Acerca da prova de Português, vários e acutilantes textos de apreensão foram escritos, também aqui nas páginas deste jornal, e a essas palavras junto as minhas, eivadas de similar preocupação e repúdio da indiferença, porque nos une como denominador comum o ensino das Humanidades e o que ele representa na formação humana do cidadão esclarecido e participativo, pilar de uma democracia sólida.

Os exames são a derradeira etapa do acto de ensinar e aprender, que é um processo. Isto pressupõe a aquisição de saberes específicos dos programas, agora convertidos em Aprendizagens Essenciais, como, por via deles, a transformação do aluno que supostamente adquiriu, no culminar daquele, em maior ou menor expressão, outras competências cognitivas e sociais. Reportando-me à Filosofia, sobre a qual me pronuncio, a reflexão crítica e problematizante, a competência analítica e argumentativa, para referir as mais relevantes e prementes. O que se tem verificado como tendência nos últimos anos é a sua progressiva desvalorização, que o exame nacional de Filosofia deste ano ostensivamente revela.

Consequências inevitáveis da pandemia? Necessário facilitismo? Discordo. O cenário anómalo e sombrio que vivemos exigiu, indubitavelmente, alguns ajustamentos, mas que deveriam ser mais equilibrados. Explicito: o aluno poderá obter, neste exame final da disciplina (envolve saberes dos 10.º e 11.º anos), a classificação de 15, 5 valores escrevendo duas frases (resposta à pergunta 12), sendo aquela o somatório das respostas a perguntas de escolha múltipla. Estas testam essencialmente reprodução de conhecimentos com nível básico de raciocínio (por exemplo as perguntas 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10). A pergunta cuja resposta permite avaliar as competências argumentativas não é obrigatória.

Não é de escassa relevância o que aqui se aponta. Não porque se reserve à Filosofia o apanágio exclusivo do pensamento, da reflexão crítica, pois outros saberes também para isso contribuem, nem tão pouco que constitua, por si só, o acesso privilegiado da verdade sobre o mundo. Trata-se do que pensa e do modo como pensa. Cabe-lhe, no âmbito das Humanidades, uma compreensão alargada do mundo e da vida, e no pensamento fundamentado e rigoroso que a define, o acesso a outro plano da realidade que derruba a profusa e enganadora aparência que invade o que nos rodeia, onde se alimenta o reino da opinião, facilmente convertida em certeza. Problematiza-se, não se oferecem soluções definitivas; o mundo humano não as permite em prol da verdade e da justiça. O questionamento é perturbador, sabemos desde Sócrates, mas ele é nuclear no exercício da cidadania activa que uma democracia saudável reclama, susceptível de pensar os problemas comuns de modo construtivo.

Último reparo: o ensino à distância. Teve a sua presença inquestionável no cenário abrupto e inquietante que vivemos. O escopo cimeiro foi o acesso de todos, indubitavelmente preciso, mas lamentavelmente não alcançável. Importa, porque para aí apontam algumas previsões, acrescentar-lhe qualidade: o artifício tecnológico que exerce um natural fascínio não deve escamotear os conteúdos. As Humanidades encontram aqui um dos seus perigos, e elas fazem falta ao exercício liberdade no século XXI.

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