Dia 85: o modo de contágio da leitura é igual ao de um vírus

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Mãe,

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Acabei de ler um livro fantástico. Daqueles que nos levam para outro mundo. Era tão bom, que na verdade foi péssimo, porque durante uns dias andei super irritada com toda a minha família: eu que normalmente dou banhos e jantares com algum prazer, via agora estas obrigações como entraves entre mim e o meu livro! O meu marido queria conversar e eu dava por mim a suspirar pelo momento em que pudesse voltar à minha leitura.

Mas agora que cheguei à última página, e depois de uns momentos de luto por ter acabado, aqui estou de novo a escrever-lhe. E a partilhar consigo uma preocupação: como é que conseguimos que os nossos filhos sintam esta paixão pela leitura? Sei que anda nessa guerra há anos, mas sente que temos conseguido avançar nessa luta? Porque é que apesar de tantos planos nacionais de leitura, tantas boas bibliotecas pelo país, e livros infantis tão extraordinários, ainda há tantos míudos desinteressados dos livros?

É verdade que o livro compete com a Internet, com a televisão e com o telefone, mesmo nós adultos estamos de certeza absoluta a ler muito menos. É, ou parece ser, muito mais fácil começar a ver um vídeo no YouTube, ou uma série, num primeiro momento parece que nos descansa a cabeça, mas depois acabamos — e os miúdos não são excepção — com a cabeça ainda mais em água. Há maneira de vencermos este “vício” e voltar aos livros, contagiando-os com o bichinho que é uma das maiores fontes de prazer e conhecimento da vida inteira?

Ana


Querida Filha,

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Antes de mais nada, manda-me esse livro porque também o quero ler! Aliás, tenho a certeza de que o primeiro passo para sentirmos vontade de ler é o entusiasmo com que alguém de quem gostamos nos fala de um livro. A publicidade boca-a-boca é a que funciona melhor, porque quando um amigo nos diz “Lê isto”, ou “Este livro é mesmo a tua cara”, não só tem a enorme probabilidade de acertar porque nos conhece bem, como basicamente nos está a propor que embarquemos na partilha de uma experiência, que se torna comum. Lido o livro, vamos poder concordar ou discordar, em última instância vamos pertencer ao “clube” dos que já o leram.

A sensação de pertença é, aliás, o que une as pessoas em redor de uma telenovela ou de uma série, ou leva os miúdos a apaixonarem-se por sereias, unicórnios, a Elsa e a Ana, a Ariana Grande, os livros do Harry Potter, ou seja lá o que está na moda.

Basicamente há muito tempo que tenho a certeza de que o modo de contágio da leitura é exactamente igual ao de um vírus: exposição e proximidade, sobretudo pelas partículas libertadas quando falamos. E, claro, quanto mais efusivos forem os sintomas, ou seja, maior a carga viral, maior a probabilidade de contágio.

Acho que esta analogia tão apropriada a tempos de covid-19 responde a todas as tuas perguntas de uma só vez.

Tudo, ou quase tudo, depende dos adultos e da sua relação com os livros. Se desde que nasceram nos vêem mergulhados entre as suas páginas, a resmungar porque nos “arrancam” delas, vão querer perceber o que é que está ali dentro com poder para nos transformar daquela maneira. E se, de verdade, queremos que se tornem leitores, vamos desunhar-nos para que leiam, e a minha experiência diz-me que mesmo que não seja logo, e se mantenham assintomáticos por uns anos, o bicho da leitura vai acabar por manifestar-se. Quando lhes lemos alto, mesmo antes de saberem ler, não como um frete pedagógico, a despachar o mais rapidamente possível, mas como qualquer coisa que adoramos fazer, e nos empolga, vão estar desejosos de aprender a ler também para terem acesso aquelas histórias sem depender dos pais — o tempo que uma criança ouviu ler alto antes de ir para o 1.º ciclo é um dos maiores preditores não só de sucesso escolar, mas de amor aos livros, dizem os estudos.

E, claro, tudo, ou quase tudo, depende de como nós próprios formos capazes de resolver a nossa progressiva dependência dos telemóveis, que ainda por cima – ao contrário dos ecrãs de televisão e mesmo do computador — vão connosco para todo o lado, até para a banheira. Não me ponho de fora desta dependência progressiva, que erode a nossa capacidade de concentração. Faço até uma confissão. Sabes como adoro ler no meu banho de imersão, antes de ir para a cama? Pois, minha querida filha, até nesse momento sagrado, dou por mim a pousar o livro para espreitar os e-mails e as redes sociais... Em termos práticos, isto significa que o tempo de exposição ao nosso comportamento digital vai ser muito mais alto do que ao dos livros. E isso terá consequências.

Podia continuar esta palestra por aqui adiante, mas parece-me que já percebeste que aquilo que te estou a dizer é que deves começar já o próximo livro, e que te deves estar nas tintas para os almoços e jantares. E, quando eles, esfomeados, refilarem, lembra-os de “Nem só de pão vive o Homem”, e manda-os ir às estantes escolher um livro para devorar. Ou, pensando melhor, mata dois coelhos de uma cajadada só: manda-os ler um livro de receitas de cozinha — e quando o jantar estiver na mesa, que te chamem.

Boa sorte!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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