Da mesquita de Hagia Sofia à flecha de Notre-Dame

Em Istambul e Paris, escrevem-se histórias diferentes: a globalização reduz as distâncias, mas há novas construções de identidade, que se manifestam nos monumentos. Como irão as várias re(li)giões do planeta juntar esforços para combater problemas comuns?

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Murad Sezer

Os anúncios soaram quase ao mesmo tempo: Hagia Sofia volta a ser mesquita, enquanto Notre Dame recupera a flecha original. São decisões que, apesar de surgirem em contextos diferentes, vão no sentido de repor um certo estado original, em edifícios de forte valor simbólico.

Em Istambul e Paris, estes edifícios sobreviveram a profundas transformações nas sociedades — tendo evoluído ao sabor dos tempos. Notre-Dame momentaneamente transformada em Templo da Razão, em plena Revolução Francesa, ou a construção dos minaretes em Hagia Sofia, quando o maior templo cristão da época foi convertido em mesquita. É por isso que a reposição de um estado original, quando crescem as tensões entre Estados, só pode ser explicada com uma certa visão da história.

A decisão, tomada pelo governo de Macron, de restituir a flecha “original”, isto é, aquela que existia antes do incêndio de 2019, parece ser consensual. O editorial do jornal Le Monde chama-lhe mesmo Flecha do Consenso. Macron reviu a sua posição inicial: já não há uma interpretação da cobertura que desapareceu. Uma reconstrução menos literal da catedral seria certamente polémica e teria a oposição de vários mecenas da própria reconstrução, da autarca de Paris, da Igreja, de deputados, historiadores de arte e de arquitectos como Jean Nouvel. 

Contudo, a flecha que desapareceu no incêndio não era original. Foi concebida pelo arquitecto Eugène Viollet-le-Duc no século XIX, num conjunto de intervenções que acentuaram o aspecto medieval de uma catedral já então com mais de sete séculos. Numa Europa em mutação, mais industrializada e menos religiosa, havia uma herança cultural por cuidar e legitimar.

O projecto de Viollet-le-Duc também é, portanto, um projecto de cenografia, que volta a sair do papel depois do incêndio de 2019. A concretizar-se, o regresso do projecto revela o respeito pelas formas da catedral, também imortalizadas em Corcunda de Notre-Dame. Mas a reconstrução também revela que, uma vez mais, há uma herança cultural a manter, numa Europa politicamente dividida.

Em Istambul, um tribunal decretou que Hagia Sofia volta acolher orações voltadas para Meca, pela primeira vez desde 1934. O tribunal alega a tomada de Constantinopla pelos otomanos, em 1453 — quando a catedral bizantina, já então quase milenar, foi convertida em mesquita. O sinal é bastante claro: trata-se de reafirmar o papel do Islão na identidade nacional turca. E questionar, senão reverter, o legado de um Estado laico na República da Turquia, que Atatürk fundou no século XX. 

As reacções à reconversão de Hagia Sofia numa mesquita foram díspares. Houve Estados que congratularam a Turquia pela decisão, enquanto a UNESCO desaprovou. Mas a reconstrução da flecha de Notre-Dame também não será fácil: a Carta de Veneza, que enquadra as intervenções em monumentos, esclarece que deve haver uma distinção entre os elementos reconstruídos e aqueles que são originais. Uma distinção que pode, uma vez mais, fazer repensar a reconstrução literal: chumbo e madeira maciça são materiais com grande impacto ambiental, claramente desajustados às técnicas de construção mais recentes.

Em Istambul e Paris, escrevem-se histórias diferentes: a globalização reduz as distâncias, mas há novas construções de identidade, que se manifestam nos monumentos. Como irão as várias re(li)giões do planeta juntar esforços para combater problemas comuns?

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