O medo mora comigo

O medo mora connosco, especialmente quando somos confrontados com uma situação particularmente difícil e assustadora, mas sobretudo porque há quem encontre deleite neste quadro de ansiedade generalizada.

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O título é propositadamente roubado ao poema de Reinaldo Ferreira, que emprestou as suas palavras a Amália para cantar, uma vez mais, frente a frente com um espelho que reflecte muitos de nós. Este verso, cantado com intensidade pela diva do fado, mas também por todos os outros fadistas que cantam este fado, é uma expressão de senso colectivo onde nos encontramos nesta espécie de lugar comum e onde estamos por demasiadas vezes confortáveis e acomodados: no medo. O medo mora connosco, especialmente agora, especialmente quando somos confrontados com uma situação particularmente difícil e assustadora, mas sobretudo porque há quem encontre deleite neste quadro de ansiedade generalizada e tente empolá-la por forma a moldar comportamentos quer sociais, políticos quer mesmo de consumo. A comunicação social desempenha aqui um papel extraordinariamente importante, o de informar o mais rigorosamente possível, sem a tentação de recorrer ao título fácil e ao clique imediato.

Este lugar-comum do medo, que nos é íntimo enquanto povo, não pode ser escolhido como terreno para o combate desta crise pandémica, nem tão pouco para o combate da crise económica, porque seria claramente uma derrota anunciada. Isto porque se nos revemos no verso em que nos é dito que o medo mora connosco, teremos de nos rever indubitavelmente naquele que diz que o medo nos “perturba a razão”. Quando nos digladiamos sobre maneiras de combater uma crise deste género, mesmo que com mestria, fazemo-lo num campo inclinado porque todos nós, os que temos medo, procuraremos aqueles que falem mais grosso, os que façam mais, digam mais, queiram mais, mesmo que não sejam nada disso. Vamos aceitar medidas como a proibição da venda de bebidas alcoólicas depois das 20h em Lisboa, ou o encerramento das esplanadas às 23h em todo o país, como se o vírus pudesse entrar numa espécie de euforia nocturna e desatasse a infectar tudo que é gente com uma pinga de álcool no sangue às gargalhadas com os amigos numa esplanada aberta para lá das 23h, numa qualquer praça deste país. Isto porque temos medo. Não porque tenhamos razão.

Como se o medo do vírus não fosse já o suficiente para que a razão andasse tolhida por esse país fora, agora também se tem medo da polícia. Não vou falar de racismo, mas de violência policial, aliás, poderei ficar-me pela agressividade que já é mau quanto baste. Não gosto nada da ideia de ver polícias a agredirem, gritarem, insultarem, empurrarem, seja o que for, jovens que estejam reunidos em pequenos grupos a beber uns copos com os amigos no meio da rua. Sim, existem regras claras sobre os ajuntamentos e sobre o consumo de álcool na rua, mas, irra, também existe decência e, se não existe, pois que se arranje. Não podemos ser um país onde se grita com jovens que se juntam para beber uns copos mas que depois assiste maravilhado a Berardo a abrir mais um museu com fundos europeus quando todos sabem que não pagou os empréstimos contraídos à Caixa Geral de Depósitos. Estou a misturar as coisas? Talvez, e depois? A existência do vírus não dá lugar ao chamamento de problemas que já existiam?

Este vírus não pode ser pretexto para amputar a liberdade, não de beber copos, mas de se dizer que se deve poder beber copos, ou seja, a organização política e a iniciativa política não pode ser um alvo a abater como tem sido, por exemplo, a Festa do Avante, repetida e sistematicamente, porque, caso contrário, quando nos livrarmos do vírus teremos o quê? A mesma coisa: o medo.

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