Medina quer reconstruir o que foi aniquilado

As últimas declarações de Fernando Medina acerca de Lisboa surpreenderam, porque em grande medida são a antítese das políticas desencadeadas nos últimos anos. Será possível uma inversão?

A publicidade, como se viu durante o confinamento, transfigura-se. Um dia, acena-nos que alcançaremos o topo do mundo se comprarmos o último modelo de telemóvel, e no seguinte, propaga os valores da solidariedade e da generosidade, com o mesmo objectivo: vender.

As últimas declarações de Fernando Medina é nisso que fazem pensar. A “marca” Lisboa – como passou a dizer-se – tem de se reposicionar no competitivo mercado global das cidades e muda-se de discurso. Há um ano o presidente da Câmara partilhava nas redes sociais um artigo do The Times onde Lisboa era qualificada como cidade das “oportunidades” para os investidores. Nada de mais, já que sempre defendeu o turismo a todo o vapor e a atracção de investimento estrangeiro e de grandes eventos como motores da “marca”. Quem podia “consumia” essa cidade. Os outros foram expulsos dela. 

Agora as “oportunidades” poderão advir da pós-pandemia. Ainda esta quinta-feira, quando participava num debate, afirmou que as dificuldades podem ser oportunidades para resolver problemas, como o acesso à habitação, o congestionamento ou a poluição, repetindo aquilo que já opinara no jornal inglês The Independent no início do mês. Aí defendia a redução dos arrendamentos turísticos de curta duração, o acesso à habitação das classes médias, a diversificação do tecido social e económico, um turismo mais sustentado, compatível com os que residem e trabalham nos centros urbanos, enfim, uma cidade mais densa, compacta, com bairros de escala humana, e atenta aos valores ambientais.

É como se depois da pandemia se tivesse apoderado das críticas que lhe foram sendo endereçadas ao longo dos anos, mas sem que em algum momento reflectisse sobre o que nos fez chegar aqui. Esta visão não é nova. Também no passado recente a narrativa de que as crises aguçam o engenho se impôs. Foi assim na Lisboa pós-crise financeira, que arriscou tudo na monocultura do turismo, com os resultados que agora se vislumbram, devido à excessiva dependência. Nada contra o turismo, seja do ponto de vista cultural, da diversidade ou económico, mas na aposta num único vector de desenvolvimento, com efeitos na especulação imobiliária e no sacrifício do tecido social urbano, sem que exista uma visão integrada da cidade e sem que os problemas estruturais da área metropolitana sejam resolvidos, como agora o vírus expôs, reforçando as desigualdades. 

No meio destas inesperadas declarações, contrárias às políticas desenvolvidas até aqui, não se vislumbra um plano estratégico, para lá das palavras de ocasião. Pior. Se existiu algo que ficou patente nos últimos anos foi a incapacidade de fazer participar os cidadãos nas decisões, fruto de uma administração demasiado hierarquizada. Onde está um plano para incentivar o debate de ideias e de propostas?

Têm existido algumas medidas envolvendo percursos cicláveis que, apesar de nem sempre bem delineados, vão na direcção da filosofia certa, e declarações no sentido de se transformar parcialmente o alojamento local para arrendamento de longa duração a custos acessíveis. Mas não nos iludamos. Isso é quase nada. Os transportes, a habitação e as inúmeras exclusões, não se resolvem com medidas suavizantes. É preciso que os cidadãos sintam que não são as ambições de fundos imobiliários ou de grandes promotores que são protegidos e que a defesa do interesse público e do bem comum estão em primeiro lugar.

A tarefa é complexa. Mas se não for desencadeada ficaremos pelos rótulos promocionais da cidade. Cabe a Medina decidir se quer ser uma marioneta do jogo do capital, que está sempre cómodo em reconstruir aquilo que vai aniquilando — é aliás assim que nos mantém presos na sua teia, criando a ilusão da transformação e do dinamismo — ou passar das palavras à acção, encetando verdadeiras mudanças e envolvendo nelas os cidadãos.

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