Depois do vírus e da crise, um acordo comercial desastroso

Não podemos ratificar o acordo UE-Mercosul. Depois do vírus, depois da crise, a última coisa de que precisaremos é de mais um tratado comercial desastroso.

Todos os países, em maior ou menor escala, participam no comércio internacional. Exportar e importar, trocar com o mundo, não é sempre benigno, nem maligno; não é por natureza justo, nem injusto - tudo depende, claro está, da forma como é feito. Assim, quando dois blocos de países negoceiam um tratado para aumentar e facilitar o comércio de parte a parte, isto pode ser feito de forma equitativa e transparente, respeitando o ambiente e os direitos humanos; mas também pode, pelo contrário, ser usado como mero instrumento de enriquecimento de grandes empresas multinacionais, à custa do planeta, de postos de trabalho, da democracia e até de vidas humanas.

Infelizmente, esta última hipótese é aquela com que estamos prestes a ser confrontados, com o acordo UE-Mercosul, um tratado comercial negociado entre a União Europeia e o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). Este acordo, preparado ao longo de duas décadas de avanços e recuos, está quase a tornar-se uma realidade: depois de, em 2019, ter sido assinado, falta agora que seja aprovado pelo Conselho Europeu e ratificado pelo Parlamento Europeu. E, se for aprovado, esperam-nos consequências desastrosas.

Antes de mais, o acordo UE-Mercosul contribuiria para acelerar as alterações climáticas que põem em perigo a sobrevivência da própria civilização, e que muito em breve se aproximam de um ponto de não-retorno. Já é danoso o suficiente que, sendo o transporte marítimo responsável por 17% das emissões globais de carbono, o aumento considerável da circulação de produtos entre os dois lados do Atlântico vá levar a um aumento equivalente da emissão de gases com efeito de estufa, precisamente na altura em que deveríamos fazer todos os esforços possíveis para reduzir a nossa pegada. Mas os problemas ambientais não acabam aqui.

O acordo UE-Mercosul aumentaria a importação, para a Europa, de produtos como a carne, o etanol e a soja, cuja produção agrícola tem estado ligada, na América do Sul, à desflorestação. E isto não conduzirá apenas a uma perda de biodiversidade. Visto que as florestas absorvem uma enorme quantidade de dióxido de carbono, a sua destruição não só nos roubará um instrumento importante para abrandar as alterações climáticas, como levará directamente à libertação de carbono previamente armazenado. O perigo é especialmente grande para a Amazónia, no meio da destruição, promovida por Jair Bolsonaro, de que está já a ser alvo - o acordo UE-Mercosul vai recompensar este crime, e aumentar os incentivos para que continue; por outras palavras, os líderes europeus tornar-se-ão nele cúmplices.

O mesmo se poderia dizer quanto aos graves crimes contra as comunidades indígenas no Brasil: como consequência de uma corrida aos recursos naturais dos seus territórios, estas populações têm sofrido expropriações com enorme violência. Ora, o acordo UE-Mercosul vai fazer crescer o mercado para esses mesmos recursos, enquanto a liderança europeia fecha os olhos aos massacres que têm acontecido. Ao mesmo tempo, crescerá o mercado para produtos ligados directamente ao uso intensivo de pesticidas, com consequências graves para a saúde de populações em zonas rurais dos países do Mercosul, expostas no seu dia-a-dia a uma forma de envenenamento.

E do lado de cá do Atlântico? Se é verdade que o acordo ajudaria partes do sector industrial europeu, a redução e eliminação das taxas aduaneiras vai ameaçar o ganha-pão dos nossos agricultores. E dos produtores de carne de porco - num sector que até produz em excesso e portanto consegue exportar milhões de toneladas por ano. Assim, o pacto com o Mercosul levará a que importemos produtos que já produzimos com padrões mais elevados, enquanto obrigamos os nossos produtores a uma competição impossível e desigual. Uma das possíveis “soluções”? Baixarmos os nossos próprios padrões de defesa do consumidor, enfraquecendo controlos de qualidade e pondo a nossa saúde em perigo.

Todos estes problemas poderiam eventualmente ser desvalorizados, se o acordo tivesse pelo menos resultado de um processo transparente, sujeito a escrutínio democrático. Não é o caso. Foi negociado em secretismo, e já está assinado, mas nem sequer temos ainda acesso ao seu texto completo. Não houve qualquer debate público sobre uma decisão tão importante.

Não podemos, portanto, ratificar o acordo UE-Mercosul. Vivemos tempos de enorme sofrimento às mãos de uma pandemia e de uma crise económica sem precedentes. Depois do vírus, depois da crise, a última coisa de que precisaremos é de mais um tratado comercial desastroso.

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