Tribalismo na América

Não sei quem vai ganhar em novembro nos EUA. Mas quem vencer procurará fazer à outra tribo o mesmo que se suspeita que o Sapiens fez ao Neandertal: fazê-la desaparecer para sempre.

Num dos livros mais célebres da atualidade, Sapiens. De Animais a Deuses. História Breve da Humanidade, Yuval Noah Harari defende que é preciso uma tribo para criar um ser humano, tendo a evolução favorecido os que eram capazes de formar laços sociais mais fortes. É isto que explica o facto de o baixo e franzino Homo Sapiens ter sido muito provavelmente capaz de levar à extinção o comparativamente alto e corpulento Neandertal na possível “primeira e mais significativa campanha de limpeza étnica da história”. Para quem defende esta tese, não consensual, fê-lo graças à sua linguagem, um recurso único e excecional que lhe permitiu criar mitos colectivamente, o que por sua vez deu-lhe a capacidade sem precedentes de cooperar em grupos com muitos indivíduos.

Esta viagem aos tempos primitivos é muito útil para compreender uma dinâmica que está a merecer um crescente interesse da ciência política nos dias de hoje: o “Tribalismo”. Em rigor, a análise do fenómeno político no grande espaço que vai da América do Norte à Europa de Leste na atualidade identifica duas tendências dominantes.

A primeira é a “Fragmentação”, que consiste na existência de vários grupos, organizados politicamente em muitos partidos, que têm visões diferentes sobre o país e o seu futuro. É, por exemplo, o caso de Espanha, Itália e, crescentemente, Portugal.

A segunda é o “Tribalismo”, que consiste na existência de dois grupos sociais, políticos e identitários claramente distintos, que têm duas visões radicalmente diferentes e irreconciliáveis sobre o país e o seu futuro. É, por exemplo, o caso dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Nos EUA temos vindo a assistir de há uns tempos para cá ao crescimento do “Tribalismo”, sendo possível identificar a existência de duas tribos. Uma, pró-Trump, que considera que ele tem razão em tudo o que pensa, diz e faz e é quase o salvador da pátria, que estava a ser perdida. Outra, anti-Trump, para quem ele tem ideias perigosas e contrárias à identidade norte-americana, é o culpado de tudo o que de mau acontecesse no país, que está a ser descaracterizado, e é, passe o exagero, o Diabo.

Esta lógica tribal pode ser vista em todas as dimensões que dominam hoje a vida dos Estados Unidos, seja na avaliação do combate à pandemia da covid-19, seja na questão da raça, seja no movimento de protesto contra o racismo, seja nas eleições presidenciais do próximo mês de novembro. No que diz respeito a estas últimas, elas serão, na prática, um referendo ao actual Presidente, dependendo o seu resultado da capacidade de mobilização das tribos pró-Trump e anti-Trump (Joe Biden, por si só, contará muito pouco).

Mas a questão é ainda mais de fundo. Como foi dito, as duas tribos têm desde logo visões antitéticas dos EUA e do seu futuro.

Em primeiro lugar, a tribo pró-Trump acredita numa nação étnica e culturalmente pura, numa sociedade tradicional de valores conservadores, num governo que tem como única obrigação garantir a segurança física e material dos “verdadeiros americanos” face ao outro e ao estrangeiro.

A tribo anti-Trump defende um país multirracial, progressista, cosmopolita, em certo sentido igualitário e aberto ao mundo devido à obrigação moral de exportar os seus valores no exterior, erradicando assim o mal da terra.

Em segundo lugar, divergem quanto ao que é o sonho americano. Para a tribo do atual Presidente, este consiste na capacidade de qualquer indivíduo prosperar, podendo até tornar-se rico, independentemente da condição social de nascença, pelo trabalho árduo e sem ajuda do Estado. Para a outra, há pessoas que por razões diversas (doença, incapacidade, mau sistema de educação, etc.) só podem romper com o ciclo vicioso da pobreza, ou subir na vida, com a ajuda do Estado.

Em terceiro lugar, têm visões muito distintas acerca da política externa dos Estados Unidos. Consciente ou intuitivamente, a tribo pró-Trump acredita num conjunto de princípios que representam uma rutura com a tradição do país desde a Segunda Guerra Mundial, tal como o nacionalismo, o antimultilateralismo, o protecionismo, as alianças ad hoc (ou de “vontades”), a política de poder e não normativa.

Já a tribo anti-Trump vê-se como a guardiã da tradição de política externa com cerca de 70 anos, defendendo o internacionalismo, o multilateralismo, o comércio livre, as alianças permanentes, a importância do poder normativo, a legitimidade especial das democracias liberais nas relações internacionais.

Mas as duas tribos têm também visões irreconciliáveis dos EUA e do seu futuro e lutarão até às últimas consequências para prevalecer e impor o “seu” país. Os estudos demonstram que as divisões na América estão quase ao nível do período da Guerra Civil, sendo só um bocado exagerado dizer que o que separa os pró-Trump dos anti-Trump é quase tanto quanto o que separava a Federação e a Confederação (ainda que por valores e motivos distintos).

Os tempos em que ambas podiam coexistir pacificamente estão a acabar. E isto transcende muito o atual presidente. Desengane-se quem acredita que um mundo novo nascerá se Donald Trump for derrotado. Os problemas são muito anteriores e bem mais de fundo. A começar pela tribalização da América. Quem estiver interessado no assunto pode, por exemplo, começar pelos últimos livros de Francis Fukuyama.

Não sei quem vai ganhar em novembro. Mas quem vencer procurará fazer à outra tribo o mesmo que se suspeita que o Sapiens fez ao Neandertal: fazê-la desaparecer para sempre. Não da mesma forma, claro. Mas tal não augura nada de bom para os EUA e para o mundo. Ganhe quem ganhar.

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