John Lewis: morreu a consciência negra no Congresso dos EUA

O congressista, que marchou com Martin Luther King e se tornara nos últimos anos na consciência da luta pelos direitos cívicos na América, morreu aos 80 anos.

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John Lewis junto ao Memorial de Lincoln, em Washington Nikki Kahn/Washington Post

Líder dos direitos cívicos nos Estados Unidos, que defendeu a não-violência enquanto marchava na primeira linha dos confrontos da década de 1960 e sofria agressões e detenções, e depois passou mais de três décadas no Congresso a defender as conquistas cruciais que ajudara a conseguir para os negros, John R. Lewis morreu aos 80 anos.

A sua morte foi anunciada numa declaração da líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, sem adiantar mais detalhes. Lewis, um democrata da Geórgia, disse a 29 de Dezembro que lhe tinha sido diagnosticado um cancro no pâncreas, mas que continuaria a trabalhar durante os tratamentos.

“Estive envolvido numa luta de algum género – pela liberdade, igualdade, direitos humanos básicos – durante quase toda a minha vida”, afirmou na declaração, acrescentando: “Nunca enfrentei uma luta como esta em que estou agora.”

Embora não fosse um legislador extraordinário no Congresso, teve sempre um papel de consciência na liderança do Partido Democrático em muitos assuntos. A sua reputação como guardião da chama dos anos 1960 definiu a sua carreira no Congresso.

Quando o então Presidente George H. Bush vetou um projecto de lei que flexibilizava os requisitos para instaurar processos laborais de discriminação em 1990, Lewis reuniu apoios para o reactivar. Em 1991, foi aprovada como Lei de Direitos Cívicos. Demorou 12 anos, mas em 2003 conseguiu a autorização para construir o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana no National Mall, em Washington.

Em 2012, o congressista republicano Paul Broun propôs que fosse eliminado o financiamento de um dos artigos da Lei do Direito ao Voto, Lewis denunciou a medida como “vergonhosa” e a emenda morreu.

Os últimos anos de Lewis no Congresso ficaram marcados pelo conflito pessoal com o Presidente Donald Trump. A interferência russa nas eleições de 2016, afirmou Lewis, tornava a vitória de Trump “ilegítima”, por isso, boicotou a tomada de posse. Mais tarde, na altura do debate formal sobre se deveria ou não o Congresso avançar com o processo de impeachment ao chefe de Estado, Lewis não teve dúvidas: “Para alguns, este voto pode ser difícil, mas temos um mandato e a missão de ficar do lado certo da História”, disse num discurso na Câmara dos Representantes em Dezembro.

Nascido no Alabama, numa família pobre de agricultores que pagavam com parte da colheita a terra que usavam aos proprietários, Lewis estava no liceu em 1955 quando ouviu a transmissão de um discurso do reverendo Martin Luther King Jr. que o levou para o activismo político.

“Todos os pastores que tinha ouvido falavam sobre o além, onde usaríamos vestidos brancos e chinelos dourados e nos sentaríamos com os anjos”, lembrava nas suas memórias, publicadas em 1998, Walking With the Wind. “Mas este homem falava de formas de lidar com os problemas que as pessoas enfrentavam naquela altura, especialmente da vida dos negros no Sul.”

Lewis emergiu da obscuridade em 1963 para liderar o Comité de Coordenação dos Estudantes Não Violentos (SNCC), que ajudou a formar durante três anos. O SNCC (pronunciar como “snick” que quer dizer incisão ou entalhe) rapidamente se transformou na guarda avançada do movimento, ajudando a organizar protestos com activistas sentados e manifestações um pouco por todo o Sul dos EUA.

Poucas semanas depois de assumir a direcção do SNCC, Lewis estava na Sala Oval da Casa Branca com cinco conhecidos líderes negros, além de King, Whitney Young, A. Philip Randolph, James Farmer e Roy Wilkins.

O grupo, a que imprensa chamou “Seis Grandes”, rejeitou o pedido do Presidente John F. Kennedy de cancelar a marcha até Washington marcada para esse Agosto que prometia levar centenas de milhares de manifestantes até à porta da Casa Branca para pressionar mais e melhor legislação sobre os direitos cívicos. O Presidente argumentava que a marcha acirraria as tensões com os poderosos políticos do Sul e isso afectaria a causa dos direitos cívicos.

Na escadaria do Memorial de Lincoln, Martin Luther King faria o seu discurso I Have a Dream. Lewis, que com 23 anos foi o mais jovem dos oradores, deu à multidão um aviso presciente: “Se não conseguirmos uma legislação significativa deste Congresso, chegará uma altura em que não limitaremos a nossa marcha a Washington… Temos de dizer, ‘Acorda, América, acorda!’ Porque não podemos parar, e não vamos ser pacientes.”

O texto lido por Lewis era o mais duro entre os principais discursos, e tinha mesmo assim baixado um pouco de tom nesse próprio dia a mando dos mais velhos – incluindo King, o seu mentor. Temiam que a condenação explícita da timidez da Administração Kennedy e a abordagem ameaçadora da terra queimada provocassem uma reacção contrária.

O contraste com os mais velhos demonstrava o papel invulgar de Lewis naqueles anos tumultuosos. Em alturas críticas, rejeitou os conselhos para dar mais tempo à legislação ou à litigação. As algemas e os cassetetes nunca entorpeceram a sua crença no confronto. No entanto, opôs-se firmemente aos nacionalistas negros militantes como Stokely Carmichael, que mais tarde assumiu o controlo do SNCC.

Como último sobrevivente dos “Seis Grandes”, Lewis continuou a lutar pela amizade entre brancos e negros. A revista Time incluiu-o, em 1975, na lista de “santos vivos” liderada pela Madre Teresa de Calcutá. Sendo apenas ligeiramente hiperbólica, a New Republic chamou-lhe, em 1996, “o último integracionista”.

Taylor Branch, historiador do movimento dos direitos cívicos, que conhecia Lewis desde os anos 1960, disse numa entrevista que “a sua característica mais distinta era a firmeza. Mostrou ao longo de toda a sua vida a fidelidade à ideia de um homem, um voto – a democracia como o propósito definidor dos Estados Unidos”.

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