Reverberações da história e da imaginação no Festival Estoril Lisboa

A qualidade musical e literária da selecção contribuiu para um percurso marcado pelo fascínio da aventura e a surpresa do exótico, mas que não deixou de fazer referência à conversão forçada ao Catolicismo, à violência e à guerra no caso da Circum-navegação.

Foto
Carlos Maduro/Festival Estoril Lisboa

O Festival Estoril Lisboa (FEL) marcou mais uma vez presença no Mosteiro dos Jerónimos, desta vez na Sala do Capítulo, com um programa especial encomendado para assinalar duas efemérides herdadas da edição anterior: o 5.º centenário da Circum-navegação da Terra e os 50 anos da chegada do homem à Lua. Com o título Sonetos, Folias e outras Fantasias - De Fernão de Magalhães a Cyrano de Bergerac, o concerto cruzou a música e a literatura através de um sugestivo guião concebido por Nuno Torka Miranda (especialista em instrumentos históricos de cordas dedilhadas e detentor de um percurso que tem privilegiado o diálogo entre a música e a voz falada). Além do próprio, a interpretação coube a Annemieke Cantor (canto), Pedro Castro (flautas de bisel, charamela e oboé barroco) e David Pereira Bastos (actor).

Música ibérica, italiana e francesa dos séculos XVI e XVII de compositores como Pedro Guerrero, Tromboncino, Ortiz, Mudarra, Milan, Monteverdi, Lully, entre outros, e alguns anónimos (presentes nos cancioneiros polifónicos portugueses e espanhóis) foi-se entrelaçando com textos de Fernão Mendes Pinto (Peregrinação), do Conde de Ficalho, do historiador José Manuel Garcia, de Camões, de Edmond Rostand e do próprio Cyrano de Bergerac (cena da chegada à Lua).

A qualidade musical e literária da selecção contribuiu para um percurso marcado pelo fascínio da aventura e a surpresa do exótico, mas que não deixou de fazer referência à conversão forçada ao Catolicismo, à violência e à guerra no caso da Circum-navegação. David Pereira Bastos expressou-se em diferentes registos — da simples narração à expressividade poética, passando pela ironia e pelo ímpeto da loucura e da imaginação nos textos de Bergerac —, enquanto os músicos recriavam uma espécie de banda sonora histórica recorrendo a diferentes práticas interpretativas, incluindo breves apontamentos a acompanhar a voz falada ou arranjos, como o da célebre Marcha para a Cerimónia Turca, de Lully, na qual Torka Miranda e Pedro Castro quase fizeram esquecer que o original se destinava a um agrupamento bem maior.

A fórmula dos concertos temáticos constitui quase sempre uma receita de sucesso, e esta proposta não foi excepção, contando com um caloroso acolhimento do público, disperso por cadeiras espaçadas devido às medidas de distanciamento. No entanto, a confluência de efemérides que sustenta a programação do festival, tornando-a num mosaico heterogéneo, fez-se também sentir neste caso. Não obstante a ideia da “viagem” e da “ousadia humana” como fios condutores, resulta algo forçado juntar num mesmo alinhamento a Circum-navegação e a viagem à Lua, mesmo se esta última é vista como um sonho a partir do passado. Na verdade, haveria aqui matéria para dois projectos artísticos.

Mas a questão mais problemática tem a ver com as condições de audição. O que se ganhou em beleza visual com a escolha da Sala do Capítulo, perdeu-se na recepção sonora, pois este espaço tem um excessivo tempo de reverberação, provocando a mistura de sonoridades que se desejavam transparentes e dificultando por vezes a coordenação entre os intervenientes. Nuno Torka Miranda mostrou a sua versatilidade e sensibilidade musical no alaúde, na vihuela e na guitarra renascentista, mas a delicadeza do timbre e a desejada filigrana das texturas resultaram nebulosas nestas condições acústicas. Pela sua natureza e potência, as linhas melódicas dos instrumentos de sopro emergiram mais nítidas (mesmo se depois eram devolvidas pela reflexão do som), contando com a precisão da articulação, a agilidade e a vivacidade da prestação de Pedro Castro, instrumentista polivalente de grandes recursos técnicos e artísticos.

A viagem de Magalhães foi evoluindo até culminar num crescendo de tensão na parte final, em trechos como Fa la la lan, do Cancioneiro de Uppsala, e Ala guerra, de Tromboncino, antes do introspectivo Si dolce il tormento, de Monteverdi, na voz de Annemieke Cantor, que teve aqui e na canção francesa que iniciou “a outra viagem” (a da Lua) algumas das suas prestações mais convincentes. A cantora tem um bonito timbre de contralto, mas mostrou-se quase sempre muito contida, diluindo contrastes entre géneros e estilos. Peças como a frótola Ostinato vo seguire, de Tromboncino, pediam um outro ímpeto, tal como Un Sarao de la Chacona, de Juan Arañés, solicitava maior brilho e energia rítmica, de resto patente na componente instrumental.

Sugerir correcção
Comentar