E depois do plano

Em 45 anos de liberdade construímos um Estado Social, protegemos a saúde para toda a população, alargámos a educação, fizemos auto-estradas, mas nunca conseguimos acordar num plano que formulasse, em bases sólidas, a nossa ambição. O ponto de partida agora existe. Condenar este exercício é condenar o nosso futuro. E isso não deveria, uma vez mais, acontecer.

Quem se lamentava com a inexistência (há décadas) de um plano de médio prazo para a acção de um Governo em Portugal, foi agora contemplado com a apresentação da proposta de António Costa e Silva (ACS) com uma Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030. Lendo o documento, confirma-se que afinal é possível associar uma visão de médio/longo prazo aos objectivos da governação. Este facto é, em si mesmo, um motivo de celebração, a que se deve acrescentar que se trata de uma visão estruturada, suportada no conhecimento do que é o nosso País e do que é, neste momento, o Mundo e as suas tendências mais relevantes.

Na iminência de virmos a contar com um programa para organizar a nossa acção num momento tão perigoso como o que vivemos, vale a pena dar um olhar rápido à História para confirmar que a existência de uma visão estratégica governamental – que ajude a vencer as dificuldades e faça avançar o País – é algo de muito raro entre nós. Não é comum, de facto, haver em Portugal um comando orientado por desígnios de longo prazo. Na nossa História quase milenar são poucos os momentos de governação guiados para a conquista de objectivos ambiciosos. Não falando nos nossos heróis militares, cujo mérito se esgotou na confirmação, pela força, da validade do nosso bilhete de identidade, poucos foram os momentos em que os governantes tiveram sucesso em resolver os problemas existenciais de um País que tem, como sabemos, a característica de estar fechado entre os reinos da Península Ibérica e o mar. São estas duas barreiras que fariam de nós, à partida, um enclave de fracos recursos e de duvidoso futuro.

Foto
D.João II, Rei de Portugal e Algarves DR

Mas no século XV, com D. João II, o nosso destino mudou. Tivemos, com o Príncipe Perfeito, uma governação que tinha o objectivo de nos abrir as portas do Mundo. Não fosse a sua perseverança, obstinação e consistência na acção, atirando marinheiros ainda inexperientes para o mar sem fim, e o nosso destino teria sido bem diferente. Com D. João II, o pequeno Portugal agigantou-se sobre o Mundo. Não foi, no entanto, grande a recompensa deste nosso herói, pois admite-se que terá morrido envenenado pela mulher, num golpe de palácio que levou ao poder D. Manuel I. A obra, no entanto, estava feita: Portugal iria dominar os Oceanos e o pequeno Reino ganhou, graças a D. João II, um reconhecimento global que irá brilhar durante séculos.

Foto
Retrato do Marquês de Pombal, Museu Nacional de Soares dos Reis DR

Não se pode dizer que a qualidade da governação se tenha mantido após D. João II. Rapidamente esbanjámos o capital conquistado e chegámos mesmo a perder a independência nacional na sequência da aventura estúpida de Alcácer-Quibir. Independência que recuperámos depois à custa da venda da prata da família. O Portugal do século XVIII, apesar da boleia do ouro do Brasil, era já uma realidade subdesenvolvida quando comparado com as potências europeias da altura, como a Áustria, a França, a Prússia ou a Inglaterra. O nosso exército era uma tristeza e, quanto à economia, não sabíamos sequer o que era a manufactura. Vivíamos da renda, num sonolento sonho sem ambição. Foi com o Marquês de Pombal que o País mudou. Pombal organizou a produção do vinho para a exportação, criou as indústrias dos têxteis e do vidro, reformulou o exército e as infra-estruturas de defesa e fez de Lisboa a primeira cidade moderna da Europa. Para o realizar, teve de vencer as forças internas de bloqueio e buscar as competências fora de Portugal. O que construiu no seu tempo, ainda hoje se testemunha. Mas não gozou também de grande recompensa porque, imediatamente a seguir à morte do seu mentor, o Rei D. José I, foi parar à prisão, morrendo também pouco depois.

Foto
António de Oliveira Salazar DR

Apesar da proximidade histórica não ajudar à leitura tranquila da realidade, é impossível não mencionar outra governação bem-sucedida nos seus objectivos, que aconteceu no século XX com António de Oliveira Salazar. O nosso século XIX não tinha sido brilhante. Menorizados pelos ingleses nas Invasões Francesas, marcados por uma guerra civil esquerda/direita entre absolutistas e liberais, éramos um Reino menor e dependente. Adquirida a paz com a saída de D. Miguel, avançámos para um desenvolvimento financiado quase exclusivamente com dívida externa até à bancarrota de 1892. Com o acesso ao crédito cortado, a Monarquia falida irá dar lugar a uma República que prometia mundos e fundos, mas que não sabia como cumprir. Na prática, foi um momento turbulento para a estrutura da sociedade, sem que a construção de uma alternativa tenha sido viável. E quem vai mudar, a partir dos anos 30, o estado das coisas será um civil levado ao poder pelos militares, um Professor de Finanças que tinha uma visão e que a conseguiu concretizar, pondo fim ao desvario das contas e à instabilidade social, cristalizando um modelo de sociedade que era o seu, sem democracia, mas também sem ambição desenvolvimentista. O País do Estado Novo era grande na Memória da Pátria, mas pobre no dia-a-dia e nessa qualidade tinha de aprender a viver. E aprendeu mesmo. Portugal mudou. Sem liberdades públicas e com repressão política forte, habituou-se à estabilidade. País pobre, mas seguro. A ambição de vencer a pobreza só virá nos anos 70 com os marcelistas que não conseguiram, no entanto, construir as condições políticas para terem sucesso na aplicação do seu programa económico. Contudo, uma visão com pontos de contacto à que hoje reivindicamos, estava lá: um grande aeroporto (que ainda hoje esperamos), um porto à escala global (Sines), uma rede viária moderna e muitas outras coisas. Só que uma visão sem meios, numa guerra colonial sem fim, deu em revolução.

A História diz-nos que não basta a um governo ter uma estratégia, são necessárias também condições políticas, técnicas e financeiras, para além de tempo, para conseguir fazer do sonho, a realidade. Hoje vemos que a Democracia não deu a Portugal um terreno fértil para um arranque económico que nos trouxesse até ao Mundo moderno. Valeu-nos a adesão ao projecto Europeu, os fundos comunitários e uma dívida pública sempre crescente para nos darmos à ilusão de que existíamos. Em 45 anos de liberdade construímos um Estado Social, protegemos a saúde para toda a população, alargámos a educação, fizemos auto-estradas, mas nunca conseguimos acordar num plano que formulasse, em bases sólidas, a nossa ambição. As nossas energias foram dirigidas para a luta partidária, jogo estéril que impossibilita a difícil construção das ferramentas do futuro. Bastou um encravanço no sistema financeiro global a partir de 2007 para descobrirmos que afinal somos pequenos, pobres e endividados. Na nossa economia de hoje o que se vê é a fábrica de automóveis Alemã, a banca Espanhola e a electricidade Chinesa. E com a pandemia causada por um tenebroso vírus, até o Turismo desapareceu. Como realidade económica nacional, não é um grande balanço, nem um ponto de partida prometedor.

No momento existencial em que nos encontramos, confrontados com uma crise de dimensão avassaladora que pode transformar este País em mais um Estado falhado, é absolutamente essencial ter um Plano e condições para o aplicar. Absolutamente crítico mesmo, já que o gesto solidário franco-alemão para a recuperação do Continente exige transparência quanto aos objectivos do investimento que irão estar disponíveis para a reconstrução.

A primeira parte do documento de ACS identifica com clareza os desafios que a tecnologia coloca ao Mundo e que irão determinar a capacidade de intervenção das sociedades humanas no futuro. Não conseguir ver o que se abre à nossa frente, é suicídio, e a luz que nos pode guiar, até pode estar no documento. Ao fazer a ligação entre os desafios do Mundo moderno e as nossas capacidades, mesmo que sejam potenciais, o documento abre uma janela de optimismo, o que é, em si, um ingrediente essencial quando nos fazemos ao caminho.

Como todos se aperceberão, a visão económica subjacente ao documento atribui ao Estado um poder que os neoliberais recusam por princípio. No entanto, foi com a liderança do Estado que D. João II, o Marquês de Pombal e Salazar mudaram o País. E foi também pela férrea mão do Estado que, recentemente, a China passou, em pouco mais de três décadas, de um País pobre, destruído pela loucura da revolução cultural que tanto emocionou os intelectuais e a juventude europeia, à posição de brigar pela liderança global. Quem estudar a recente História da China descobre uma evidência extraordinária: a de um país que, apesar de basear a sua governação no poder absoluto do Estado, se consegue relacionar com o Mundo Ocidental – que, por sua vez, segue o ideal da não intervenção estatal – e assim construir o seu capitalismo... de Estado. Capitalismo esse que vai desindustrializar o Ocidente, transferindo as actividades produtivas para a China e o seu controlo para o Estado Chinês. Não se pode dizer que este seja um balanço de grande sucesso global e, por isso, o tema é, actualmente, objecto de reflexão na Europa, constando igualmente nas considerações da proposta de ACS.

Mas identificar objectivos é só uma parte do exercício. Falta definir os instrumentos que poderão transformar esses objectivos – que são objectivos para Portugal – em actividades interessantes para os empreendedores em Portugal. Depreendemos que esses instrumentos serão subsídios, vantagens fiscais e outras, mas não sabemos como, nem quais. Essa matriz de apoios é a peça fundamental que neste momento está ausente do projecto. Presumimos que o programa do Governo não se destinará naturalmente a atribuir ao Estado a responsabilidade de fazer, mas sim a de dar aos investidores e empreendedores as indicações sobre a vantagem de o fazer. Se se quiser, um pouco na linha do que os Chineses fizeram quando elegeram as actividades a prosseguir, seleccionando e autorizando apenas os investidores e os investimentos que pugnavam como eleitos.

Do documento consta ainda, na parte final, uma extensa lista de desejos, quiçá a recuperação de projectos e ideias guardados em diferentes gavetas. Para o objectivo de lançar um plano de recuperação económica, não haveria provavelmente necessidade de juntar essa lista pormenorizada. Esse capítulo da proposta tem um nível de detalhe – e porventura de sonho – que acaba por descaracterizar os pontos cardeais do projecto, essenciais no traçado claro do caminho.

Não vai ser fácil trazer este Plano para a estrada. O mundo político descobriu que, enfim, não havia no seu meio recursos para gizar um Plano digno desse nome e que pedir a opinião a um não político, afinal, fazia sentido. Infelizmente, o reflexo partidário vai muito provavelmente traduzir-se em resistência, num exercício de afirmação pública que é simultaneamente a sua razão de existir.

O cruzamento com os requisitos de Bruxelas vai exigir igualmente alguma lavoura e espírito aberto. Vai fazer falta igualmente dar espaço a iniciativas cujos resultados não aconteçam só daqui a alguns anos. Mas o ponto de partida existe. Condenar este exercício é condenar o nosso futuro. E isso não deveria, uma vez mais, acontecer.

Sugerir correcção