Não abdicar das utopias

Deixar o sistema económico funcionar tal como está, sem reformar o direito das empresas e do trabalho de modo a inverter as relações de poder e permitir que os trabalhadores participem nas decisões das empresas, é não ter percebido a advertência de Polanyi (que Costa Silva leu) quanto ao risco de deriva autoritária.

Há poucos slogans mais mortíferos do que o famoso “Não há alternativas” – ao aumento das desigualdades, ao poder da finança, ao declínio dos sindicatos, à globalização, etc. Mortífero porque incita ao fim do pensamento, que Hannah Arendt tanto combateu, o pior que pode acontecer à humanidade. Enquanto economista, sei que este slogan emana da teoria económica dominante, que granjeou uma influência intelectual exorbitante por pretender ter descoberto as leis que regem o funcionamento das economias, como se tais leis existissem, como se houvesse uma verdade em economia.

As alternativas à degradação das condições de trabalho

Cingindo-me ao mundo do trabalho, o fenómeno mais marcante das últimas décadas na maioria dos países ocidentais é a deterioração das condições de vida das classes médias e baixas sob os efeitos da insegurança económica, da intensificação do trabalho e do avolumar das desigualdades. Simultaneamente, ocorreu o enriquecimento desmedido dos grupos sociais ligados à finança e à gestão das grandes empresas. Tem-se assim criado um fosso entre os mais ricos, que vivem numa bolha cada vez mais fechada e afastada do quotidiano da maioria das pessoas, e a restante população, com um sério risco de impermeabilidade social.

É evidente que é o mundo do trabalho que mais vai sofrer com a imensa crise económica e social criada pela pandemia da covid-19. Milhares de pessoas vão ficar desempregadas, ou sem trabalho no caso dos supostos trabalhadores independentes, enquanto outras serão obrigadas a esforços acrescidos para assegurar a sobrevivência e a competitividade das empresas onde trabalham. Estas terão de comprimir custos, incluindo, obviamente, os custos salariais. Isto será feito recorrendo a novas tecnologias e a reestruturações organizacionais que vão, muito provavelmente, criar novas fraturas sociais que, longe de substituir as fraturas antigas, as vão aprofundar.

Quais são as alternativas a uma degradação da situação do mundo do trabalho? Não aceito o diagnóstico marxista segundo o qual a única alternativa é a revolução porque não acredito na revolução; só acredito nas utopias e nos processos interiores e lentos que podem desencadear. Até porque revolução não significa sempre mais democracia e, se há algo sub-repticiamente contido no “não há alternativas”, é precisamente o insinuar que a decisão não está nas nossas mãos, isto é, o fim da democracia. Como já aqui defendi, a alternativa que considero existir para melhorar a condição dos trabalhadores é a sua participação nos órgãos de governo das empresas, alternativa que os democratas americanos, mas não os tecnocratas europeus, colocaram nos seus programas políticos.

Os efeitos da polarização social na atitude face ao político

É em grande parte no mundo do trabalho que se geram as desigualdades e a polarização social, como referido acima, e é portanto aí, onde as pessoas passam a maior parte do seu tempo, que se gera o ressentimento que alimenta os protestos antissistema e o voto populista. Muitos trabalhadores sentem, na pele e na alma, que o valor do seu trabalho não é reconhecido, que a dedicação com que trabalham é desprezada.

Outro fenómeno estrutural do mundo do trabalho é a sua individualização e consequente dissolução das solidariedades coletivas. Assim, as lutas laborais que marcaram o século XX foram em grande parte substituídas por movimentos sociais que exprimem um ressentimento contra os partidos políticos tradicionais, incapazes de proteger os cidadãos dos efeitos de um capitalismo dominado pela finança. Vários estudos, em economia e ciência política, mostram que quem vota na direita populista nos países ocidentais diz ter um baixo nível de confiança nos outros, quando os eleitores dos partidos tradicionais e da esquerda mencionam um nível de confiança interpessoal bastante elevado.

A polarização social parece estar associada ao enfraquecimento dos laços sociais, a uma grande fragilidade da coesão social. Podemos estar a assistir ao reaparecimento de classes sociais antagonistas, mas em termos agora radicalmente diferentes. As aspirações coletivas deram lugar às frustrações individuais e à descrença nas utopias; muitos grupos sociais desprivilegiados anseiam hoje por regimes e líderes fortes, tal é a necessidade de proteção. O facto de as nossas sociedades não terem estado à altura dos valores que supostamente promovem justiça e igualdade – pode explicar a expansão dos populismos e dos regimes autoritários. Os valores humanistas têm sido tratados com condescendência, privilegiando-se os valores de performance e sucesso.

O Plano de Recuperação de António Costa Silva

A informação disponibilizada publicamente acerca do Plano de Costa Silva deixa antever que o mundo do trabalho está praticamente ausente do Plano. Vários riscos são identificados e muitas medidas estão previstas para os enfrentar, mas não parece que o risco de desagregação da coesão social tenha sido devidamente considerado. Deixar o sistema económico funcionar tal como está, sem reformar o direito das empresas e do trabalho de modo a inverter as relações de poder e permitir que os trabalhadores participem nas decisões das empresas, é não ter percebido a advertência de Polanyi (que Costa Silva leu) quanto ao risco de deriva autoritária.

O que verdadeiramente falta ao Plano de Recuperação de Costa Silva é ser animado por utopias, a utopia solidária para evitar a destruição do laço social, a utopia democrática para dignificar o trabalho. Não podemos deixar que a necessária gestão da urgência, hoje mais incontornável do que nunca, nos leve a abdicar das utopias, porque é com elas, mistura de pensamento e de sonho, que se constrói o futuro.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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