Bruxelas não desiste de “dificultar a vida” a todos os que querem contornar regras fiscais

Comissão está a analisar a deliberação do Tribunal Geral da UE, que declarou a nulidade da decisão de multar a Apple por ter beneficiado de ajudas de Estado ilegais. Executivo adoptou pacote fiscal para promover sistema mais transparente, eficiente e sustentável.

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Francisco Seco/EPA

Minutos antes de adoptar um novo pacote fiscal, composto por dezenas de iniciativas interligadas cujo objectivo é promover um sistema de tributação mais transparente, eficiente e sustentável ao nível dos 27, a Comissão Europeia viu o Tribunal de Justiça da União Europeia dar uma machadada na sua estratégia de combate às práticas de elisão e planeamento fiscal agressivo seguidas por vários Estados-membros.

Numa decisão que muito provavelmente será objecto de recurso para a mais alta instância judicial da UE, o Tribunal Geral de Justiça europeu declarou a nulidade de uma decisão do executivo comunitário, que em 2016 aplicou uma multa de 13 mil milhões de euros à Apple, que teria beneficiado de um regime fiscal selectivo na Irlanda para evitar o pagamento de milhares de milhões de euros de impostos.

A Comissão alega que esta prática, defendida pelo governo de Dublin, viola a legislação europeia e configura uma situação de ajuda de Estado ilegal.

A decisão judicial não demoveu o executivo europeu, nem quebrou a sua determinação. “O nosso objectivo mantém-se: queremos tornar a vida mais simples para os contribuintes honestos, e mais difícil para aqueles que procuram ignorar e enganar o sistema”, garantiu o comissário europeu para a Economia, Paolo Gentiloni.

“Não podemos tolerar estas distorções, é uma questão de justiça”, reforçou o vice-presidente executivo, Valdis Dombrovskis, assinalando que em alturas excepcionais de crise, ainda se torna mais óbvia a necessidade de os governos assegurarem “receitas fiscais justas e transparentes” para terem os recursos necessários para o investimento público.

No caso da Apple, lembrou esta quarta-feira a Comissão, o regime favorável de que beneficiou permitiu que por exemplo em 2011, o primeiro ano do programa assistência financeira que o país foi obrigado a pedir para evitar a bancarrota, a tecnológica só tivesse pago impostos sobre 50 milhões de euros, quando registou lucros de cerca de 16 mil milhões de euros. 

“Como pode ser considerado justo que uma das empresas mais ricas do globo durante vários anos tenha pago substancialmente menos do que 1% de impostos sobre os avultados lucros que obteve na Europa? Não pode”, perguntou e respondeu Dombrovskis, para quem é fundamental que as empresas multinacionais do digital que operam no mercado único europeu “comecem a pagar a sua parte”. “O pacote fiscal que acabámos de adoptar também diz respeito a isso”, vincou.

“A Comissão Europeia vai avaliar esta deliberação [judicial] e reflectir sobre os próximos passos”, anunciou, em comunicado, a vice-presidente executiva com a pasta da Concorrência, Margrethe Vestager, que insistiu no argumento que sustentou o processo contra a Apple e o governo irlandês — e que já foi validado pelo Tribunal de Justiça da UE noutros casos.

“Se os Estados-membros concedem a determinadas empresas multinacionais vantagens fiscais que não estão disponíveis para as suas rivais, isso prejudica a concorrência justa na União Europeia”, repetiu, avisando que os seus serviços não desistirão de investigar todas as medidas de planeamento fiscal agressivo que possam resultar em auxílios de Estado ilegais.

Mas só a vigilância apertada pode não chegar para alterar o actual quadro. “A supervisão tem de ser acompanhada por uma mudança na filosofia das grandes empresas bem como de nova legislação que permita eliminar as actuais lacunas e garantir maior transparência”, dizia ainda o comunicado assinado por Margrethe Vestager.

Alguns desses passos foram dados esta quarta-feira, no âmbito do pacote fiscal aprovado no colégio de comissários, dividido em três componentes. A primeira, que tem a ver com a modernização e simplificação das regras e procedimentos fiscais, está vertida num plano de acção com 25 medidas específicas para tirar partido das tecnologias e reduzir os obstáculos e burocracias no cumprimento das obrigações fiscais e os encargos administrativos que recaem sobre os contribuintes em vários sectores.

O segundo elemento, que foi sublinhado por Dombrovskis, passa pela revisão da actual directiva relativa à cooperação administrativa (DCA7), de forma a alargar as normas da UE em matéria de transparência fiscal à actividade das plataformas digitais, e assim assegurar a taxação das receitas geradas no comércio de bens ou serviços online.

Finalmente, e no âmbito da “boa governança fiscal” e do combate às práticas prejudiciais, tanto em território europeu como a nível internacional, a Comissão propõe uma reforma do Código de Conduta e uma revisão na lista de jurisdições não cooperantes.

Numa conferência de imprensa conjunta, Dombrovskis e Gentiloni justificaram a necessidade de avançar rapidamente nestas três vertentes, uma vez que a retoma da crise do coronavírus e o crescimento a longo prazo exigem, por um lado, a protecção das receitas públicas, e por outro a estabilidade para os agentes económicos.

“A tributação justa é um trampolim para ajudar a nossa economia a recuperar da crise. Com estas medidas, os Estados-membros asseguram os recursos que tanto necessitam para investir, e também um melhor enquadramento fiscal para os contribuintes”, afirmou Gentiloni.

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