A matéria? É tudo o que (não) vem no manual

“Abram o manual na página ...” – e foi assim que se conseguiu doutrinar tantos dos que hoje afirmam que Portugal não é um país racista.

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Miguel Feraso Cabral

Eu andei numa dessas escolas públicas dos subúrbios que jamais figurarão no topo dos rankings nacionais. Como tantas dessas escolas, a minha aparentava diversidade. Alguns alunos eram brancos, vestiam pólo e tinham cabelo à surfista; outros eram negros, calçavam Air Max e tinham o cabelo entrançado; mas o que predominava era o resto, que não cabe em estereótipos. Nos corredores, ouvia-se crioulo e qualquer grupinho de amigos podia fazer casting para o anúncio da Benetton.

Havia, porém, várias escolas dentro da minha escola: a escola das turmas de ensino regular, a escola do recreio Benetton e a escola das outras turmas, de ensino não-regular.

A escola portuguesa é racista e aquela onde eu andei não é excepção. Não me refiro apenas à segregação subtil nem aos grandes clássicos do “racismozinho” que ouvimos da boca de alguns professores — o “Não me importa se é preto, amarelo, roxo ou às bolinhas”, como se houvesse alguém (a respirar normalmente) que fosse roxo ou algum humanóide às bolinhas; ou o “Eu não vejo cor”, que nega a alguém parte da sua identidade. 

Quando digo que a escola é racista, refiro-me também aos manuais escolares, que perpetuam o racismo através da história desonesta e mal contada, com mórbidos contornos de lenda nacionalista. Os nossos manuais contam a história do ponto de vista dos “descobridores”, dos colonizadores bonzinhos que estabeleceram relações “amigáveis” e “pacíficas” com os povos indígenas. Ainda me lembro do mapa que ilustrava com setinhas coloridas as rotas do comércio de especiarias, ouro, algodão... Ah, sim, e também do comércio de escravos, que eram da “raça negra” e pertenciam a “povos pouco desenvolvidos” aos quais “levámos civilização”.

Agora tudo é racismo”, desconversam algumas pessoas. Quanto aos manuais escolares, vários estudos comprovam o racismo do seu discurso. Já em 2012, as investigadoras Marta Araújo e Sílvia R. Maeso diziam que o tratamento da escravatura nos manuais constitui uma “prática institucionalizada de esquecimento social”, revelando “um vocabulário colonial higienizado e despolitizado” que normaliza a escravatura como uma prática “daqueles tempos”. Assim, institucionalizou-se “o silêncio sobre o racismo enquanto produto histórico do colonialismo” e abriu-se espaço à banalização destes e de outros processos históricos de violência. Em Outubro de 2018, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) publicava um relatório no qual, apesar de aplaudir alguns “desenvolvimentos positivos” em Portugal, pedia uma reformulação do ensino da História, sobretudo no que diz respeito às antigas colónias e ao tom glorificador usado para os descobrimentos. Também em 2018, um estudo de Ana Paula Squinelo, Glória Solé e Isabel Barca sobre o conceito de escravidão nos manuais escolares concluía que as suas narrativas se inserem numa linha explicativa obsoleta, referindo-se “ao cativo como uma ‘coisa’, um ‘não-sujeito’, vítima do processo senhorial e sistema escravocrata para o qual não ofereceu qualquer resistência”.

O racismo insidioso dos manuais escolares vai muito além da forma como estes tratam a escravatura, porque a nossa História não se fez só de negros enquanto escravos. A omissão de políticos, activistas, filósofos, cientistas, escritores, poetas e artistas negros é em si mesma racista.

“Abram o manual na página ...” – e foi assim que se conseguiu doutrinar tantos dos que hoje afirmam que Portugal não é um país racista.

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