A narrativa e os factos

Mais do que a liturgia do Poder, por vezes dominada pelas exigências da narrativa perante a crueza dos factos, é em nós, Cidadãos empenhados, e no nosso compromisso colectivo e solidário, que residirá a capacidade de resistir e vencer.

Where is the wisdom lost in knowledge?
Where is the knowledge lost in information?

T. S. Eliot, The Four Quartets

Costumava usar esta citação de T.S. Eliot, grande poeta inglês do século XX nascido nos EUA, para ilustrar aos meus alunos as dificuldades na relação médico-doente. De um lado, os doentes munidos de vasta informação adquirida na internet (Dr. Google), conscientes dos seus direitos indeclináveis e do seu poder de decisão (empowerment). Do outro, o médico, assumindo-se como mediador da sabedoria da tribo, depurada pelo conhecimento e temperada pela sua experiência e informação estruturada. Esse será o húmus da relação médico-doente em tempo novo de ampla informação. Um mundo de histórias fascinantes!

Mas aplica-se, também, à Política e às suas relações com a Ciência, que se pretende independente, guiada pela apreciação dos factos e imune aos apelos de narrativas convenientes ao momento político. Particularmente relevante em momentos de crise, como a História nos ensina, em tempo de Guerra e em tempo de Paz. Os meandros dessa relação foram secretos, nunca transparentes e bem recatados, e só décadas depois vão sendo desvendados pelos historiadores e aproveitados pela ficção, literária e cinematográfica. Os protagonistas mais emblemáticos são conhecidos. Do lado da Ciência, Robert Oppenheimer, pelo seu extraordinário grupo de cientistas envolvidos no Projecto Manhattan que conduziu à bomba atómica, e Alan Turing, com o notável grupo de cientistas reunido em Bletchley Park na criptografia, descodificação das ordens para as forças armadas alemães e análise de informação que levaria à nova era da computação e inteligência artificial. Da Política, Roosevelt e Churchill, que lhes deram poder e autonomia. Mas entre estes dois mundos tão diferentes, da Ciência e do Poder, houve os mediadores, menos conhecidos, mas não menos relevantes, descodificadores da linguagem científica face à necessidade da Política e para apaziguamento de sucessivos conflitos.

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Roosevelt com Churchill na Conferência de Casablanca, 1943 DR

Talvez as lições desse tempo nos sejam úteis, agora que enfrentamos o maior desafio colectivo que nos afecta directamente, na Saúde como na Economia, na Educação e na organização da vida colectiva.

Nem Roosevelt nem Churchill fizeram reuniões públicas e mediáticas com os seus cientistas; usavam os seus mediadores e a história registou encontros pontuais, recatados, entre eles e os seus líderes científicos, em momentos de encruzilhada que requeriam decisão rápida e corajosa.

Julguei que algo semelhante tivesse ocorrido – behind the scenes – após o infeliz comunicado do CNSP, um órgão consultivo, certamente muito democrático, multidisciplinar e altamente ineficaz, e a decisão corajosa do primeiro-ministro de encerrar as escolas e fechar outros sectores e a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República.

Por isso, surpreenderam-me as reuniões globais, semi-confidenciais (!), entre cientistas e políticos, oficiadas no Infarmed, e duvidei da sua eficácia, guardando, no entanto, prudente recato perante o apelo à Unidade na Acção feito pelo chefe de Estado. Nestas coisas, transparência tende a ser o oposto de espessura, densidade e qualidade, e há outras formas de optimizar o impacto duma informação rigorosa e assim consolidar a decisão política.

Nestes escritos, que me ajudaram a ultrapassar a solidão do confinamento necessário, alertei para a importância de uma cadeia de comando bem clara e definida, estruturada, militar, caro leitor, com estratégia, hierarquização nos seus níveis de actuação, que assim potenciasse uma acção em que cada protagonista soubesse claramente como e o que fazer e assumisse Responsabilidade.

Um pouco como na decisão clínica que, colhendo na sabedoria da tribo, é um exercício partilhado entre as expectativas do doente e a experiência do seu médico, num exercício solitário da sua Responsabilidade profissional. Não pode nem deve ser de outra forma!

O mesmo se aplicará à decisão política cujo impacto nos afecta globalmente.

Houve equívocos que – ignorando factos – marcaram desde o início a narrativa oficial. Talvez ainda não seja o tempo de exigir responsabilidades, como escreveu Henry Marsh, no Times, a propósito da impreparação do NHS britânico perante a avalanche de problemas da Pandemia. Unchartered waters, em que o caminho teve que ser feito caminhando!

É certo que vencemos o período de maior impacto e controlámos a disponibilização de serviços clínicos públicos, como aliás é dever dos Estados perante situações de calamidade pública. Mas estamos a falhar na segunda fase, como se, usando a linguagem futebolística, tivéssemos esquecido que a disputa tem no mínimo duas partes e às vezes mais que um jogo. Inebriámo-nos com o sucesso da primeira parte, como escreveu Rui Tavares, e esquecemo-nos que a luta é longa.

E esta é a grande realidade, que talvez não servisse a narrativa oficial. Os factos falam por si. A doença não foi vencida e entre nós continua na sua primeira investida, não passámos ainda para a segunda fase.

Eis alguns factos.

1. O SARS-CoV-2 é mais perigoso... 

...que o habitual vírus da gripe, ignoramos aspectos da sua transmissão, bem como o seu efeito em cada doente individual, onde na maioria, felizmente, é passageiro e relativamente inócuo, mas noutros causa doença potencialmente fatal e incapacitante. Como identificar uns e outros é ainda uma questão em aberto. Sabemos apenas que alguns portadores de doenças respiratórias, cardiovasculares e diabéticos têm maior risco de complicações.

Por isso, a disseminação na comunidade é um problema. É realmente impossível isolar numa redoma e proteger os que potencialmente estarão em maior risco de complicações. O que não quer dizer que não possamos melhorar regras e funcionamento em instituições de cuidados continuados e residências para seniores, e no nosso comportamento social, assim mitigando riscos de contaminação. Identificar portadores da doença e contagiantes potenciais, isolá-los e cortar cadeia de transmissão, é estratégia complementar indispensável. Refiro-me a viajantes que chegam ao país, áreas onde se verificaram núcleos de infecção, acção nas zonas mais carenciadas onde o acesso aos cuidados de saúde é mais difícil e muitas vezes desconhecido. Até porque a tecnologia nos está a ajudar disponibilizando testes de diagnóstico cada vez mais fiáveis e rápidos, encurtando tempo para as medidas necessárias.

Testar continua a ser uma necessidade e base para actuação correcta da Saúde Pública.

2. Organização dos Serviços de Saúde

A primeira fase foi demasiado hospitalocêntrica, menos dependente dos sectores ambulatório e de Saúde Pública. Correu bem, foi um sucesso, pois conteve-se a mortalidade e as complicações e não se esgotaram os recursos em Cuidados Intensivos, evitando situações experimentadas noutros países. Teve um custo: a interrupção brusca e ainda não recuperada da atividade normal, do tratamento das outras doenças, como foi suscitado num trabalho da London Business School e depois confirmado pelos meus colegas da FMUL, que mostraram um incremento significativo da mortalidade global neste período, não atribuível à covid-19, em comparação com períodos homólogos de anos transactos.

Esta é uma lição fundamental para o tempo que se segue. Precisamos de organizar-nos para que a resposta necessária seja fundamentalmente baseada na capacidade da Saúde Pública e do sistema ambulatório, público e privado – chega de julgar que esta é uma batalha exclusiva e propriedade do SNS. Não é aceitável paralisar novamente a atividade regular nos hospitais.

Felicito a decisão editorial de publicar a chamada de atenção para o risco expectável no Outono. Chama-se, a isso, to raise awareness, alertar para as medidas necessárias, criar exigência colectiva. Não confundo com alarmismo.

Em 1967 houve as grandes cheias em Lisboa, com grande impacto em vidas, adversidade e que o governo da época escamoteou. Só existia em Lisboa uma Faculdade de Medicina, mas os estudantes de Medicina, através da sua Associação de Estudantes, foram exemplares, desde a realização de inquéritos sociais e clínicos, à vacinação contra a febre tifóide e outras doenças e à ajuda nos cuidados médicos. A narrativa oficial ignorou, mas a realidade impôs-se!

Não tenho informação sobre cooperação dos estudantes de Medicina nesta luta contra a pandemia; porventura informação deficiente de quem já não está no activo. Mas creio que seriam ajuda fundamental nas equipas de Saúde Pública e, na situação actual na região LVT, quase que me atrevo a pedir ao Dr. Rui Portugal, por quem tenho apreço, que os mobilize. Eu confio na generosidade da juventude e no seu interesse pelo conhecimento prático e... há em Lisboa duas Escolas Médicas e seriam um bom reforço, e uma experiência inesquecível e riquíssima, como no passado foi para a minha geração. E também no Algarve, onde ainda persistem hotspots. Todos seremos necessários.

3. Necessidade de reforço do sector ambulatório

É a maior prioridade para o futuro imediato e a curto prazo. Imagino que a carreira de Saúde Pública estará desfalcada em recursos humanos e materiais, assim como a capacidade de intervenção dos meus colegas médicos-generalistas. Não podem repetir-se situações em que aos médicos de família não era possível pedir testes de diagnóstico e decidir em conformidade, tendo que esperar decisão hospitalar ou da linha SNS 24. É preciso que sejam dotados dessa capacidade de actuação e a possam utilizar. Eles terão que ser, na batalha do desconfinamento, a primeira linha no combate, assim possibilitando que os hospitais possam continuar a tratar todas as outras patologias e os doentes que precisam. E o Presidente Ramalho Eanes teve absoluta razão na sua extraordinária e oportuna entrevista, quando acentuou a necessidade de haver clareza na definição das linhas de combate, como numa batalha. E acrescento: se os chefes não entendem, então que venham outros, a História está cheia de exemplos de substituição de comandantes em plena guerra e que mudaram o sentido da batalha.

4. O impacto da Tecnologia... 

...foi claramente subvalorizado, em especial, da inteligência artificial (IA) no tratamento da informação. Leio que a DGS terá recusado a plataforma de registo de informação da OMS; será verdade? A realidade é que há problemas no registo e tratamento da informação que são inaceitáveis agora e num país europeu. Sei, também, que não têm sido disponibilizados à comunidade científica os dados factuais – raw data – que permitam análises mais rigorosas da realidade e avaliar outras perspectivas. Talvez por isso haja tão poucos trabalhos científicos sobre a realidade portuguesa, como acontece noutros países que nos são próximos. Aliás, a organização da informação clínica foi uma das primeiras prioridades no combate à covid-19 no Reino Unido e na Alemanha. Menor tradição científica nossa? Ou temor que a verdade dos factos perturbasse a narrativa oficiosa?

Acho que logo no primeiro artigo que escrevi manifestei incredulidade com o sistema da linha SNS 24, de cuja eficácia dependia a orientação atempada para o diagnóstico; conheço casos que me foram relatados de quem ficou dias à espera de orientações. Porque não se aproveitou a nossa capacidade tecnológica para introduzir sistemas de IA na orientação das chamadas? Soube de programas nacionais de gestão de recursos que foram aceites no estrangeiro – e cá? Ignorados?

Há a grande discussão sobre o rastreamento dos contaminados. Sei que põe problemas legais e filosóficos, de compromisso potencial de direitos fundamentais. Mas há outras soluções, desde tecnologia de diagnóstico rápido, à centralização correcta da informação e sua orientação para a actuação no terreno, e que não violam esses direitos fundamentais. Como é possível que ainda continuem a ser notícia desacertos no registo e contabilidade dos casos? Que imagem se dá do País? Venham mais murros na mesa como há dias o do presidente da Câmara de Lisboa, se isso ajudar nas mudanças que se impõem.

Caro leitor, por vezes sinto que não devo incomodá-lo mais com estas reflexões, cuja utilidade prática parece bem limitada. Apaziguamento da consciência? Apelo contra a indiferença e o unanimismo que parece marcar o Tempo?

Vamos viver uma época muito difícil e disso precisamos de ter consciência. A História poupou-nos a grandes sacrifícios colectivos, a exigências de comportamentos-limite como condição de sobrevivência, à emergência de sentido de Responsabilidade pública indispensável à continuidade da Sociedade organizada. Depois, o sol, a convivialidade que é marca dos europeus do Sul e tão típica do nosso modo de ser, o peso de um confinamento que nos apanhou desprevenidos, o receio de um inimigo ainda em parte desconhecido, a angústia perante o Futuro, tudo isso ajudará a compreender razões pelas quais baixámos a guarda perante uma doença que não foi ainda vencida e cujo impacto global é tremendo.

Mais do que a liturgia do Poder, por vezes dominada pelas exigências da narrativa perante a crueza dos factos, temerosa de acordos e influências e com a sua incapacidade de mudar organização e métodos, é em nós, Cidadãos empenhados, e no nosso compromisso colectivo e solidário, que residirá a capacidade de resistir e vencer.

Por isso, renovo, com muitos outros, um apelo ao Civismo e à Responsabilidade individual e colectiva, mesmo que no discurso público se sacrifique a Verdade às conveniências e exigências da narrativa e dos compromissos políticos.

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