Rio e o monstro

Que o líder do PSD não entenda que com esta vertigem antiparlamentar e populista alimenta o monstro que ameaça as democracias ocidentais é uma pena. Que o PS o “ajude” a deixar “o primeiro-ministro trabalhar” é igualmente lamentável.

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LUSA/RUI MANUEL FARINHA
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Se as propostas de alteração do funcionamento do Parlamento propostas por Rui Rio tivessem sido avançadas por André Ventura caía o Carmo e a Trindade e o PS provavelmente não apoiaria uma. Mas engane-se quem acha que o síndrome Ventura não existia já dentro do sistema antes do inventor do “Chega” ter sido eleito deputado. Rui Rio, com as suas considerações em que equipara o direito/dever de informar a fabricar camisas, a sua visão do Parlamento como um sítio “onde não se trabalha”, a sua ânsia por rebentar com a separação de poderes, é a prova disso.

Não deve haver nenhum líder da oposição em parte alguma do mundo a querer reduzir as vezes em que pode interpelar o primeiro-ministro porque ele, primeiro-ministro, “tem de trabalhar”. E, claro, no Parlamento, não se trabalha, como decorre do pensamento de Rio. Keir Starmer, o novo líder do Labour britânico, fez subir o partido nas sondagens em parte devido à sua eficácia a questionar semanalmente Boris Johnson. Ali não se brinca – as perguntas ao primeiro-ministro acontecem uma vez em cada sete dias e ninguém acha que o primeiro-ministro, em vez de estar a responder aos deputados, devia estar “a trabalhar”. Mas o Reino Unido é uma democracia consolidada, que leva a sério o papel dos deputados. Em Portugal, jovem democracia, as dificuldades em perceber o papel do Parlamento são grandes – Rui Rio, que já mostrou alguma aversão à instituição parlamentar, manifestamente não percebe. Evidentemente, também nunca será um Keir Starmer, mesmo que só uma vez por mês: a sua eficácia a fiscalizar o primeiro-ministro é coisa do domínio das ruas da amargura. As sondagens, as malditas sondagens, que agora põem o Labour a subir, nunca tiveram a mesma simpatia com o PSD.

O “pacote” para mudanças no Parlamento proposto pelo PSD é um mimo: nas comissões de inquérito, além dos deputados, também participariam cidadãos, com todos os direitos menos os de voto. Os debates parlamentares prévios aos conselhos europeus também acabariam – o primeiro-ministro só será obrigado a ir ao Parlamento falar desse tema aborrecido que é a Europa duas vezes – por ano, supõe-se. Ficaria assim com mais tempo para “trabalhar”. Outra proposta é que as incompatibilidade dos deputados sejam fiscalizados não pela Comissão de Ética mas por uma comissão exterior ao Parlamento – recorde-se que já o são pelos tribunais. Nem de propósito Ventura simpatizou com esta.

Rio não está sozinho – o PS apoia o fim dos debates quinzenais. Que o líder do PSD não entenda que com esta vertigem antiparlamentar e populista alimenta o monstro que ameaça as democracias ocidentais é uma pena. Que o PS o “ajude” a deixar “o primeiro-ministro trabalhar” é igualmente lamentável. 

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