O fim das reuniões do Infarmed

O conhecimento científico foi essencial enquanto a preocupação era exclusivamente sanitária, manteve-se útil quando a preocupação maior se tornou económica, e converteu-se em incómodo quando a preocupação é hoje sobretudo política.

Esta semana realizou-se a última reunião que, desde o início da pandemia em Portugal, convocava regularmente, no Infarmed, governantes e principais responsáveis políticos nacionais com epidemiologistas. O objectivo inequívoco sempre foi o de obter a melhor informação científica como fundamento para melhor decisão política; o conhecimento mais actualizado para a acção mais atempada. A iniciativa, em si, parece tão obviamente necessária quanto terá sido ineditamente revolucionária, em sintonia com a excepcionalidade dos tempos. Em qualquer caso, foi um bom exemplo de uma governação que se quer séria e credível, de uma acção que se quer transparente e fiável, de uma sinergia de competências que se reforçam mutuamente, como a melhor via para promover o bem comum. Terminou agora.

Podemos certamente especular sobre os motivos. E à margem de leituras puramente políticas que começam a circular, desenrolando-se sempre mais no plano das intenções do que no dos factos, creio ser razoável apontarmos pelo menos três diferentes hipóteses para este termo abrupto do que era consensualmente reputado como positivo.

Uma primeira é a de que estas reuniões deixaram de ser úteis, pelo que se terão tornado também desnecessárias. Aliás, só esta sua supressão natural seria absolutamente pacífica. Teremos, porém, dúvidas em relação à sua autenticidade, uma vez que a pandemia em Portugal está longe de se encontrar controlada, sendo até possível falar em descontrole quando a média diária de novos infectados continua a ultrapassar largamente os 300 e as autoridades sanitárias reconhecem não conseguir quebrar as cadeias de transmissão. Acresce a proliferação de novos surtos, agora também no Norte, a sua preocupante irrupção em hospitais, e a intensificação dos focos infecciosos em lares, o que, a curto prazo, resultará num aumento significativo do número de óbitos.

Não, não terá sido pelo pleno controle da situação epidemiológica em Portugal que as reuniões terminaram. Avancemos, pois, para uma segunda hipótese, bem menos benevolente que a primeira, e que aponta para a cacofonia científica. Sem alguma vez termos estado nestas reuniões no Infarmed, temos experiência quotidiana da sucessão de afirmações científicas num sentido e no seu contrário, com a mesma convicção e pergaminhos equivalentes. É verdade que o cidadão comum desconhece os processos de investigação científica, os seus ritmos de avanços e recuos, a sua inalienável dimensão de incerteza. Mas estaremos apenas perante um problema de má comunicação ou já também de competição mediática? São muitos os cientistas de várias áreas que querem mostrar saber e até alguns que querem também fazer política, encontrando por vezes justificações rebuscadas para apoiar as teses do Governo, como em relação à objectividade dos critérios que desaconselham a visita a Portugal, quando, afinal, a sua missão é exactamente a inversa: o conhecimento científico deve aconselhar o poder político.

E porque, independentemente de vicissitudes políticas, a investigação científica vai prosseguir no seu contínuo processo de observação, problematização, formulação de hipóteses, experimentação e teorias, e mais tarde ou mais cedo virá a compreender e também a controlar o coronavírus, podemos passar a uma terceira hipótese explicativa para o fim das reuniões do Infarmed que denuncia a auto-suficiência da política. O conhecimento científico foi essencial enquanto a preocupação era exclusivamente sanitária, manteve-se útil quando a preocupação maior se tornou económica, e converteu-se em incómodo quando a preocupação é hoje sobretudo política. Assim se explica também que sejam agora os políticos a produzirem conhecimento científico, como tem acontecido com as afirmações da autoridade de saúde (e não só) de que os novos contágios não ocorrem nem nos transportes públicos, nem em situações de lazer.

A Politica não tem de coincidir com a Ciência. Cada uma tem o seu espaço próprio indispensável. Aliás, a própria investigação científica, nas dúvidas e probabilidades que honestamente apresenta, expõe a necessidade da intervenção política sobretudo nas matérias urgentes. A Política tem um olhar mais amplo e diversificado sobre a realidade social, reunindo uma panóplia de variáveis importantes a ponderar. Pode beneficiar do conselho científico, da fundamentação objectiva da Ciência, mas a decisão e a responsabilidade indeclinável que esta acarreta é da Política.

E foi a política que terminou as reuniões no Infarmed. Pela sua irrelevância informativa? Pela cacofonia científica? Pela auto-suficiência da política? Talvez pela conjugação das três, cada uma com o seu diferente peso ainda por determinar.

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