Como pode uma pandemia desencadear a reforma do sistema penitenciário português?

Os gastos do sistema prisional norueguês são duas vezes superiores aos gastos de outros países europeus.

Vários países, incluindo Portugal, aplicaram medidas preventivas da transmissão da Covid-19 em meio prisional. Num momento de respostas pontuais, propomos analisar o sistema penitenciário português, partindo das aprendizagens que o período pandémico possibilita.

As visitas foram eliminadas ou reduzidas, porém apenas uma minoria de países acautelou a manutenção de contactos, através da isenção/redução do pagamento de chamadas, permissão de telemóveis (por exemplo, Espanha) ou introdução de mecanismos de videoconferência (Espanha e Argentina). Tal abertura do sistema prisional às novas tecnologias já vem sendo recomendada antes da pandemia, como forma de acautelar a manutenção de laços sociais importantes à ressocialização, sobretudo no caso de reclusos/as que não possam, pelos mais variados motivos, receber visitas presenciais. Em países como a Rússia, as famílias enviam e-mails aos reclusos, e nas Filipinas, são usadas videochamadas para o contacto familiar.

Além da introdução de tecnologias, vários/as reclusos/as foram libertados/as sob as mais variadas formas: indultos, perdão das penas, antecipação e prolongação das saídas, etc. Portugal seguiu o panorama mundial e com a lei 9/2020 estima libertar até 2000 reclusos. Desta forma, penas privativas da liberdade que pareciam necessárias foram dispensadas, o que faz questionar a aplicação dos critérios de quantum e de ultima ratio da pena. 

Neste exercício de questionamento, deveríamos olhar para as estatísticas oficiais. Contudo, Portugal não possui dados atualizados sobre a reincidência - primeiro obstáculo. Os últimos dados lançados pela Provedoria de Justiça, em 2003, apontavam para uma taxa de reincidência de 51%. Outros indicadores estimam que a taxa de reclusão seja de 127 (por 100 000 habitantes), tendo cada recluso/a um custo para o Estado de cerca de 50 euros por dia, o que perfaz quase 20 000 euros por ano. 

Olhando para as penas alternativas, segundo as estatísticas oficiais da Direcção-Geral de Reinserção Social, 65% das penas e medidas estão a ser cumpridas na comunidade. Não obstante, em muitos casos, não são criadas as condições favoráveis para o seu cumprimento, o que aumenta a probabilidade de reincidência. Tal contribui decisivamente para uma taxa de reclusão superior à média europeia (106). A este propósito, veja-se o exemplo da Noruega, que prevê a aplicação de quaisquer medidas razoáveis para prevenir a reincidência, definindo-as com precisão e garantido as condições necessárias ao seu cumprimento e que apresenta indicadores bastante mais favoráveis: taxa de reclusão de 60% e de reincidência de 20%.

Perante estes indicadores, devemos pensar noutras respostas adequadas às necessidades da vítima, do/a ofensor/a e da comunidade. Um exemplo é a Justiça Restaurativa, nomeadamente a mediação penal, prevista em Portugal para os crimes cuja pena é inferior a 5 anos (Lei nº 21/2007, de 12 de Junho), excluindo-se os crimes sexuais, de peculato e corrupção e casos em que o/a ofendido/a tenha menos de 16 anos. Porém, encontra-se suspensa, devendo pensar-se na sua reativação, tendo por base os bons exemplos dos parceiros europeus. 

Na Finlândia - taxa de reclusão de 57% - 60% das queixas culminam em acordo entre as partes e 90% dos acordos são cumpridos. Outro exemplo é a abordagem norueguesa, considerada por especialistas como eficaz, que apoia entre 8000 e 9000 casos anualmente. 

Contudo, existirão sempre casos em que a natureza dos bens jurídicos ofendidos e a trajetória individual não se coadunam com a aplicação de medidas na comunidade ou de processos de mediação penal. Assim, urge repensar o próprio sistema prisional, transformando-o num caminho efetivo de reabilitação - a reclusão significativa.

Partindo do projeto-piloto The Houses, na Bélgica, dinamizado pela ONG De Huizen, um exemplo são as casas de detenção. As grandes prisões são substituídas por centenas de casas, com níveis de segurança e de acompanhamento diferentes consoante as fases de cumprimento de pena. No momento da sentença, é elaborado um plano individual, que mapeia o caminho do indivíduo, apelando ao seu envolvimento ativo. Contrariamente às grandes prisões, estas casas estão próximas da comunidade, tendo um papel económico, social e cultural. Esta detenção comunitária estimula o respeito e o envolvimento de todos/as.

Para os últimos 9 a 15 meses de pena, há casas de detenção na Noruega, Finlândia e Holanda, onde os/as reclusos/as trabalham na comunidade, têm direito a férias e realizam as suas próprias compras - rotinas importantes na vida pró-social. No caso finlandês, foi possível reduzir em 20% a probabilidade de reincidência, tendo atualmente uma taxa de 36%.  

Podemos ir mais além, atentando no caso holandês (país com uma taxa de reclusão de 54% e reincidência de 40%), onde a Exodus Foundation gere uma casa de transição: uma opção para ex-reclusos/as em que o apoio e acompanhamento individual - em articulação com redes de suporte social - se mantêm, para garantir uma transição bem-sucedida para a liberdade. É, assim, um último passo para a reintegração gradual, com benefícios para a pessoa, à qual é dada tempo de adaptação à vida em liberdade, mas também para a comunidade que pode acompanhar o processo de regresso à sociedade, idealmente reduzindo o estigma associado.

Estas opções acarretam custos económicos. Os gastos do sistema prisional norueguês são duas vezes superiores aos gastos de outros países europeus. Porém, cálculos de custo-benefício sugerem que os gastos são compensados em benefícios à sociedade: redução de despesas do sistema de justiça criminal no futuro; aumento do emprego (o que resultará em impostos pagos); e redução nos custos da experiência de vitimação.

Deste modo, este novo paradigma não propõe apenas soluções orientadas para o futuro dos/as ex-reclusos/as, mas também prepara a sociedade para lidar melhor com todos/as.

A experiência internacional também mostra o poder da abertura dos Estados ao diálogo e à criação de sinergias com a sociedade civil. Estas organizações, estando próximas das populações, permitem uma resposta integrada, aumentando a probabilidade de sucesso das intervenções. Se o Estado já transferiu para a sociedade civil várias das suas competências na prestação de apoio e cuidado a populações em situação de vulnerabilidade, com resultados positivos, questionamos por que não fazer o mesmo de forma consequente no âmbito do sistema prisional, nomeadamente abrindo portas à inovação social com base em evidência.

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