Decisões no Brasil demonstram que vidas, afinal, podem não valer tanto assim

No trânsito, na gestão da pandemia de Covid-19 e na violência do dia a dia, posturas brasileiras relativizam mortes.

Com a pandemia, milhares de estafetas de aplicações viram suas precárias condições de trabalho agravarem-se na América Latina, que já enfrentava dificuldades económicas, com destaque para Brasil e Argentina. Em ambos os países, trabalhadores se mobilizaram a exigir mais garantias.

No entanto, as semelhanças param por aí. Enquanto na Argentina um dos grandes estopins foi a morte de Franco Almada em um acidente no fim de maio, no Brasil, os “motoboys”, como são chamados, seguiram a morrer, sem que nenhuma fatalidade causasse grande comoção. No mesmo mês, em São Paulo, 40 motociclistas faleceram, um aumento frente aos 29 de 2019, mesmo com as restrições de mobilidade, segundo o governo. Assim como nos homicídios e na Covid-19, os dois gigantes regionais tratam a morte de maneiras muito diferentes.

As mortes em acidentes de trânsito não são novidade em São Paulo. No começo da última década, a proibição de promoções como “a pizza é grátis em caso de entregas que demorem acima de 30 minutos” teve de ser aprovada, por conta dos danos causados pela pressão aos estafetas. A mera ocorrência de acidentes não bastou para que a ideia fosse rejeitada, com o poder público vindo a intervir.

Em 2016, o número de mortes em algumas das principais vias da cidade chegou a cair 52% após a redução nos limites de velocidade. No entanto, andar mais devagar gerou insatisfação popular, e João Dória foi eleito alcaide justamente com o slogan “acelera” para retomar os valores anteriores. Em 2017, as mortes nas chamadas “marginais” interromperam a trajetória de queda, e voltaram a subir.

A lógica que tolera mortes em troca de benefícios individuais foi a mesma adotada pelo governo e grande parte da população durante a pandemia de Covid-19. “Todos nós vamos morrer um dia”, chegou a afirmar Jair Bolsonaro sobre sua postura. A oposição à medidas de isolamento social foi generalizada, e uma assessora do Ministério da Economia foi flagrada a dizer que a morte sobretudo de idosos seria positiva para a Previdência. Com o número de mortos diário estabelecido acima dos mil, e o total a ultrapassar os 60 mil, o país começa a retoma do pouco que deixou de fazer. A bola rola no campeonato do Rio de Janeiro, e um número cada vez maior de festas ocorrem no fim-de-semana.

O número diário de mortos no Brasil aproxima-se das fatalidades totais da Argentina na pandemia, perto dos 1500. Sobre a rígida quarentena argentina, o presidente, Alberto Fernández, declarou “A economia recupera-se, uma vida não”. As medidas de restrição adotadas desde o começo da pandemia elevaram a popularidade de Fernandez, que chegou a 70%, algo impensável há pouco em um país notabilizado pelas divisões, no que é conhecido por “grieta”.

Duas maiores populações da América do Sul, e com tempo de preparo semelhante, a comparação internacional com a Argentina é uma das mais válidas para o Brasil. A população brasileira é cerca de cinco vezes maior, mas em quase todas as estimativas, o número de mortes em proporção no Brasil ficou acima de dez vezes o argentino.

Em 2016, a Argentina registava uma taxa de 6 homicídios a cada 100 mil habitantes, número que era de 34,7 no Brasil, segundo a OMS. Em 2017, o Brasil chegou à marca de 65,7 mil assassinatos, dados do Atlas da Violência. Parte nada desprezível das mortes é causada por quem deveria proteger. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o número de assassinatos cometidos por policias aumentou em 2020 com comparação ao ano passado. Em termos gerais, as mortes nesses casos somam cerca de 10% dos homicídios totais.

Ainda assim, políticos como Bolsonaro e Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foram eleitos em 2018 com promessas que facilitariam mais os policias a tirarem vidas. Com Sérgio Moro, Bolsonaro tentou expandir o “excludente de ilicitude” para a mortes por policias, o que na prática dificultaria que homicídios fossem punidos. Já com Witzel, que notabilizou-se por dizer na campanha que com ele a polícia iria “mirar na cabecinha” e atirar, o Rio de Janeiro teve seu recordes de mortes causadas pela polícia em 2019.

Parte da opinião popular argumenta que os mortos são bandidos, a relativizar o papel de executores nas mão de policias, no entanto, a realidade não é bem essa. A morte de João Pedro Alves, 14 anos, dentro de sua casa por forças da polícia chegou a revoltar o Brasil, mas um mês depois, já pouco era lembrada. Em 2020, sete crianças já morreram no Rio de Janeiro vítimas de armas de fogo, possivelmente de diferentes origens de disparo, mas com a certeza de que nenhum deles tem nada com isso.

No caso de João Pedro, a polícia realizava uma operação para combater o tráfico de drogas. A motivação para grande parte dos homicídios no Brasil tem o comércio de entorpecentes como origem. A exemplo de Portugal, pelo mundo abordagens mais maduras sobre a questão demonstram como é possível diminuir a letalidade. No entanto, à exemplo de Rodrigo Duterte e Joko Widodo, no Brasil, para muitos, comercializar drogas é crime passível de morte.

Falar de desrespeito à vida no Brasil sem citar suas maiores vítimas é desrespeitoso. Apenas durante a ditadura militar, notabilizada pelo horror de mais de 400 mortes de opositores, a Comissão Nacional da Verdade estima em 8350 indígenas mortos por políticas do regime. Aos que relativizam o período por conta de um número menor de óbitos em comparação com outros, como a Argentina, a cifra de indígenas pode saciar o desejo de sangue. Em meio à expansão de exploradores em suas terras, os índios brasileiros agora convivem ainda de forma precária com mais uma doença. Mas, infelizmente, na História do Brasil, esta não é nenhuma novidade.

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