Saúde digestiva em tempo de pandemia

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"Uma vez que as perturbações da imunidade têm um papel importante na origem destas doenças, o seu controlo passa por uma modulação do sistema imunitário" National Cancer Institute/Unsplash

Desde o início da descoberta dos efeitos do vírus SARS-CoV-2 (covid-19) e dos sintomas da infecção, sabe-se que os sintomas digestivos podem ser frequentes, desde a indisposição gástrica, a falta de apetite (em 80% dos casos), diarreia e vómitos. Estes sintomas adicionais são comummente ignorados e se não forem tratados podem impactar na recuperação da infecção.

Apesar de ainda não estarem bem determinados os efeitos da infecção pelo novo coronavírus no que se refere à saúde digestiva, é importante reter algumas mensagens, nomeadamente no que respeita à continuidade de tratamentos — principalmente em doentes de risco — mantendo rotinas de vigilância e prevenção tão importantes para diagnósticos precoces.

Doentes com determinados subgrupos de doenças digestivas, tal como as Doenças Inflamatórias do Intestino (DII) — doença de Crohn, colite ulcerosa —, necessitam, para o seu tratamento, de recorrer a medicações que afectam o seu sistema imunológico.

Uma vez que as perturbações da imunidade têm um papel importante na origem destas doenças, o seu controlo passa por uma modulação do sistema imunitário. Os diferentes medicamentos utilizados acabam por condicionar graus diferentes de imunossupressão, o que interfere, nestes doentes, na resposta a agentes infecciosos e por aumentar a susceptibilidade à complicações resultantes da infecção.

Assim sendo, o universo de pessoas com DII sob tratamento imunossupressor deverá ser incluído no grupo de risco para a covid-19 (tal como os doentes portadores de doenças crónicas respiratórias, diabetes, obesidade, hipertensão arterial, portadores de patologia oncológica, pessoas doentes com idade superior a 70 anos e com outras comorbilidades). No entanto, apesar deste facto, a suspensão da terapêutica da DII poderá condicionar um risco de recidiva ou de agravamento da doença, não se aconselhando que os doentes, mesmo que estejam clinicamente bem, suspendam os tratamentos. O mesmo se poderá aconselhar para doentes com doenças hepáticas que recorrem a tratamento com agentes farmacológicos que interferem na resposta imunitária. A mensagem é: não suspender tratamentos em curso com o intuito de ser menos susceptível à covid-19.

A explosão da pandemia covid-19 resultou numa redução drástica na actividade clínica em todos os sectores da saúde, não só em Portugal, como em todo o mundo. Houve uma mudança do modo como se exercia a actividade de consulta, surgindo uma implementação das teleconsultas, em substituição das consultas presenciais. Será, de facto, a teleconsulta um substituto? Numa fase de retoma da actividade programada, se bem que a experiência nesta modalidade de intervenção clínica tenha resultado numa aceitação da sua viabilidade para alguma actividade (por exemplo, ajustes terapêuticos, medicação após terem chegado os resultados do meios complementares de diagnóstico), a consulta presencial é, em muitas da vezes, insubstituível, pela necessidade da complementaridade do exame objectivo.

As unidades de saúde têm implementadas medidas para garantir a segurança de todos. E os doentes com sintomas do aparelho digestivo (particularmente quando surgiram recentemente ou quando ocorreram alterações recentes nos padrões de funcionamento intestinal) deverão recorrer à observação do gastrenterologista.

Um dos procedimentos mais necessários ao diagnóstico e tratamento das afecções digestivas é a endoscopia. A redução da realização dos procedimentos endoscópicos considerados “não urgentes” traduziu-se no adiamento de tratamentos planeados de lesões já diagnosticadas (por exemplo, pólipos) e de procedimentos de diagnóstico para esclarecimento de sintomas (por exemplo, dor abdominal, perdas de sangue nas fezes), assim como num considerável atraso na realização de exames de rastreio do cancro colorrectal. Daqui poderão resultar atrasos no diagnóstico de lesões que ainda estavam em fase pré-maligna e de detecção de lesões malígnas em estádios mais avançados, perdendo-se a chance de detecção numa fase mais precoce da doença.

Deste modo, impera a necessidade de uma retoma da actividade dos centros que se dedicam à gastrenterologia, não só na actividade de consultas, mas, dum modo bem premente, na realização dos procedimentos endoscópicos, com todas as medidas de segurança preconizadas pelas autoridades de saúde. Desta forma, se minimizará a possibilidade de ocorrência de atrasos de diagnóstico e o risco de detecção fora da janela de oportunidade terapêutica.

Mensagens a reter:

  • Sintomas digestivos agudos podem também ser manifestações de infecção covid-19;
  • Doentes em tratamento de doenças digestivas crónicas com potencial imunossupressor, não o deverão suspender;
  • Não é aconselhável o adiamento de consultas para esclarecimento e tratamento de sintomas digestivos;
  • A situação actual da pandemia covid-19 não deverá ser justificação para o atraso de recurso a procedimentos endoscópicos para diagnóstico e tratamento, assim como rastreio de cancro, pois poderá causar perdas de oportunidade de tratamento precoce.
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