Dia 82: Por que falamos mal com os nossos filhos?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Mãe,

Ontem no supermercado reparei numa mãe que estava a falar com a filha, ainda em idade de andar no carrinho. O tom de voz era suave, não estava exasperada, mas dizia o seguinte: “Olha aquele menino a olhar para ti, estás a ser tão feia! Não tens vergonha?” A grande ofensa da criança era pedir para sair dali. Não estava a chorar, nem nada que se parecesse, estava apenas irrequieta no final das compras e queria passear, o que me pareceu perfeitamente normal para os seus 2 anos.

Passados uns minutos, a mãe surpreendeu-a com um chocolate, enquanto brincava com ela. A mãe não estava furiosa. Aquelas palavras saiam-lhe com certeza mais por hábito, do que por outra coisa. Não tinham uma carga tão negativa como parecem ter quando as lemos aqui no papel. A relação daquela família é, com certeza, maravilhosa e não acho que as crianças fiquem traumatizadas com estas pequenas coisas, mas ao mesmo tempo fiquei a pensar sobre como é que lhes falamos, e incluo-me a mim nesta reflexão porque sei que da minha boca saem, por vezes, coisas parecidas. E, se for sincera, às vezes dou por mim a falar-lhe num tom com que não falo a mais ninguém!

O pediatra Carlos Gonzalez diz, num dos seus livros, que se os pais falassem aos amigos como falam com os seus filhos, os amigos já lhes teriam virado as costas há muito tempo. Isto tem que nos fazer pensar! Até porque são estas frases e estas palavras que se transformam na voz interna deles. É assim que aprendem a falar consigo próprios e com os outros.

Por que falamos tantas vezes mal com os nossos filhos? Porque é que, por vezes, parece que guardamos o nosso pior para as pessoas que mais adoramos no mundo?

Beijinhos,
Ana


Hum, querida filha,

Queres que te responda mesmo com toda a sinceridade? Porque podemos. Porque eles dependem de nós, e não têm para onde ir (embora, é claro, há sempre a possibilidade de fugirem para casa da avó!). Porque acumulamos frustrações e chatices no emprego, nos transportes, em todo o lado e descarregamos sobre eles, porque não nos podem despedir, nem chamar a polícia. Ou, podendo, esperamos secretamente que o seu amor por nós seja tão grande, que nos perdoem, e nos deixem fazer deles bodes expiatórios durante um bocadinho. Mais ainda, porque toda a vida, também nos tentaram mil vezes calar, usando a técnica de nos envergonhar, comparando-nos com os outros, e mesmo que isso não tenha feito mais do que aumentar a nossa raiva, ficou-nos no arsenal de armas que usamos quase sem pensar. Felizmente, é justo que se diga que também lhes damos o melhor de nós, e compensamo-los como podemos — um chocolate é um bom pedido de desculpa.

Mas, também, é preciso dizê-lo, porque os nossos filhos conseguem ser muito chatos, cansativamente persistentes nas suas exigências, sem a maturidade que lhes permita perceber o nosso estado interior, intuindo quando mais uma gota que seja vai transbordar o copo. À medida que crescemos vamos percebendo, infelizmente por tentativa e erro, onde é que está o limite da pessoa que temos à frente — imagino-o sempre como uma linha encarnada pintada no chão —, e guardamos uma distância segura desse ponto de explosão. Quando vemos o chefe às voltas no gabinete, não vamos lá, adiamos a conversa para outro dia; se percebemos que a nossa amiga está atolada de trabalho, dizemos rapidamente que lhe ligamos mais tarde, enquanto eles, por regra, continuam a seringar-nos o juízo, mesmo quando já lhes dissemos mil vezes que estamos com uma enxaqueca, ou um rotundo Não.

Agora o que é evidente é que depois não podemos esperar que não usem o mesmo tom, o mesmo discurso, a mesma maneira de falar connosco, com os outros e, mais grave, consigo mesmos. Muito menos castigá-los por isso. Ou seja, tens razão, só tínhamos a ganhar se parássemos e nos ouvíssemos por momentos a nós mesmos. Suspeito que, às vezes, bastava isso.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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