O vírus, a razão e a emoção

O vírus anda por aí e as pessoas também. A prevenção com as medidas indicadas e que neste momento mereciam nova campanha é o melhor produto da razão.

O vírus é tudo o que há de mais parecido com as primeiras formas de vida em cima da terra, há milhares de milhões de anos. Faz o que sabe, hospedar-se e multiplicar-se. Todavia, o ser humano, há uns escassos 300 mil anos, possui um cérebro que dá para raciocinar, transmitir aos outros e sobretudo usar para actuar sobre a realidade. Esta é a razão. Mas como não há razão pura, é acompanhada de emoção. E o medo pode chegar ao alarme e ao pânico. É a condição humana. Porém, usá-lo como arma de arremesso e manobra política excede o campo da luta de ideias para pertencer à área da moral. E é feio.

O medo é o que permite aos animais em geral e ao ser humano sobreviver. Mas há um momento em que a emoção pode transformar o medo em alarme e este conduzir ao pânico. O raciocínio fica bloqueado, a acção descontrola-se e a doença deixa de ser acompanhada da serenidade necessária. Agrava-se. Ora neste momento precisamos: pensar com clareza, aplicar prevenção e ter esperança. Após o terramoto de 1755, o padre Malagrida percorria as ruas proclamando que era a consequência dos pecados da população e do poder político da altura, o Marquês. Este respondeu cruelmente, mas construiu uma nova cidade. Há sempre Malagridas que esperam por nós... Felizmente não há política cruel, há democracia.

De acordo com os dados da excelente conferência que o pneumologista Filipe Froes proferiu a 30 de Junho na sessão realizada no Infarmed por um grupo de profissionais com o título Estamos do lado da solução, a expressão do vírus nas pessoas atingidas é a seguinte: 85% não tem sintomas, 15% tem sintomas e 5% morre. Aquilo que se tem feito em todos os países (excepto a pequena Islândia) não são estudos de prevalência com amostras aleatórias. Segue-se a trajectória da observação: começa no doente e, portanto, nos sintomas. É extraordinário o trabalho hospitalar, a capacidade de transformar espaços, estabelecer isolamentos, separar doentes de acordo com a gravidade. O pessoal dedica dias e noites ao tratamento. Merecem a alegria de terem salvo muitas vidas.

Mas há um outro trabalho que não é tão destacado. Pelo contrário, pode ser minado pela desconfiança. É o trabalho de formiguinhas dos médicos de família e dos médicos de saúde pública. Sigamos o doente. Tem febre, tem tosse, tem dificuldades respiratórias e vai ou ao hospital ou ao Centro de Saúde. Só com alguma gravidade indica hospitalização. Se for ao Centro de Saúde, há uma triagem à entrada que direcciona o doente com estes sintomas para um ou mais centros criados pelos Agrupamentos de Centros de Saúde da zona, destinados exclusivamente para estas queixas. É feita a colheita e a maior parte dos doentes vai para casa e aguarda pelos resultados cerca de dois dias. Se o doente for positivo, mas sem gravidade, o que se passa na maioria dos casos, passa a ser vigiado diariamente pelo médico de Medicina Geral e Familiar e é isolado em casa, separado dos familiares, tanto quanto possível. No entanto, todo o resto da família também é confinado de quarentena em casa, até o doente negativar na análise. É aqui que entra o trabalho do médico de saúde pública, que faz o chamado inquérito epidemiológico, que é um trabalho de detective – por onde andaram, onde trabalhavam, com quem conviveram. Por vezes são localizados bairros, pontos de partida do contágio. Todos os contaminados passam a fazer parte de uma plataforma informática, à qual têm acesso por código o respectivo médico de família e o médico de saúde pública. Para quem sabe o que é depender de plataformas informáticas, calcula o que foi montar isto a funcionar em tempo relâmpago. Detalha-se toda esta rede, para que o público em geral tenha consciência do que se passa nos bastidores para salvaguarda da saúde de todos nós e que não aparece nos alarmes e protestos injustos.

E é aqui que entra a realidade de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), como entrou e entra a região do Porto. Graças ao estreitamento de entrada para as faculdades ocorrida nos anos 90 do século XX, em 2018 (últimos dados acessíveis) os médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) com menos de 55 anos eram apenas 23 por 100.000 habitantes no país em geral. Por outro lado, tal como descreveu na mesma sessão o professor Correia de Campos, incluindo o seu mea culpa, à medida que a população se concentrava à volta dos grandes centros metropolitanos, nomeadamente à volta de Lisboa, a percentagem de colocação de médicos em LVT ia diminuindo. De tal modo que quando se faz a diferença do número de médicos por 100.000 habitantes entre 1996 e 2018 (INE) esta região é de longe a mais prejudicada, com uma redução de cerca de 25% dos médicos entre os 31 e 55 anos, enquanto todas as outras aumentavam! Inteligente? Não. Demagogia política para satisfazer descentralização? Talvez.

Quanto aos médicos de Saúde Pública, a realidade é dramática. Nesta região há apenas 101 e a idade média é de 59 anos. A maior parte, ao escolher a especialidade, sonhava actuar sobre as determinantes da Saúde (habitação, alimentação e outras), mas vê-se confinada a juntas médicas e burocracia. Este é o panorama técnico e clínico numa região em que a norte e a sul do concelho de Lisboa crescem bairros que têm todas as condições para a expansão da epidemia. Adaptando a análise do geógrafo Hervé Thery (escola francesa de geografia) publicada a 5 de Julho de 2020 na La Revue Géopolitique relativa ao Brasil, alguns destes nossos bairros têm as seguintes características: densidade populacional com alojamento com mais do que duas pessoas por compartimento, baixa relação entre a população activa e a economicamente dependente, água e esgotos insuficientes, percentagem elevada de afrodescendentes, poucos anos de estudo, taxa de analfabetismo acima da média e elevada percentagem de pessoas de 18 anos ou mais sem rendimento. Estão reunidas todas as condições. Quando os historiadores da ciência estudam as epidemias, localizam a primeira epidemia da varíola no século IV a.C., quando começaram a aglomerar-se as cidades. E o vírus foi endémico até ao aparecimento da vacina. Mas, neste momento, o ser humano e a sua razão poderiam, para além de criar vacinas, pensar as cidades em função da saúde e não do lucro.

A Saúde Pública poderia então ter uma palavra a dizer, não só em aconselhamento mas em decisões. No ano de 2018 houve um total de óbitos de 113.051 pessoas, em 10.283.820 registadas. Isto talvez ajude a relativizar os nossos 1600 da covid-19. Foram sobretudo pessoas mais velhas e nos meses frios. Digamos que é “natural”, embora não seja natural viver com frio. Mas o que já não é natural é que a causa de morte tenha sido a diabetes para 4000, provavelmente subavaliada. Não fosse esta sociedade obesogénica e teriam sido muito menos. Tivesse poder a Direcção-Geral da Saúde e houvesse vontade política dos municípios para além das rotas pedestres e não haveria abertura de grandes estabelecimentos de marca de comida hipercalórica na área das escolas dos ciclos e do secundário, nem com grande evidência ao lado do Estádio Universitário. Não venham com a liberdade de escolha individual, que é argumento que já não colhe em nenhuma investigação científica!

São os dez milhões de infectados no mundo pela covid-19 e as 500.000 mortes já assinaladas que assustam a Organização Mundial da Saúde e com razão. Portugal tem evoluído em lume brando e deve olhar-se para os números de internados e de óbitos mais do que para os números de infectados. O vírus anda por aí e as pessoas também. A prevenção com as medidas indicadas e que neste momento mereciam nova campanha é o melhor produto da razão.

E há a esperança. Porque os seres humanos, a par das manobras políticas, também sabem cuidar uns dos outros. A vacina vai atrás do dinheiro, mas sobretudo vai atrás de um grande entusiasmo e colaboração científica. E ela virá.

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