Mobilidade urbana e publicidade responsável: onde se cruzam?

Não se compreende que o sector petrolífero e a indústria automóvel não vejam legalmente balizada a sua propaganda. Esta é uma medida difícil e que poderá complicar ainda mais a vida aos órgãos de comunicação social. Mas será certamente mais fácil e eficaz se for concertada, transversal e, quem sabe, apoiada – e justifica o debate.

Tendemos a achar, com alguma razão, que os hábitos são coisa difícil de alterar. Este argumento é frequentemente utilizado para justificar a manutenção dos padrões de mobilidade nacionais, onde o uso do automóvel particular prevalece sobre todos os restantes modos de transporte. Porém, carece de rigor. Antes de mais, porque nem sempre foi assim: este foi um padrão construído por décadas de políticas que dispersaram a cidade e apostaram na rodovia, tornando andar de transportes públicos e a pé desconfortável, quando não impossível. Depois, porque as enormes mudanças que têm ocorrido na nossa sociedade contrariam qualquer visão estática da mesma.

Muito falta fazer, para reverter as referidas políticas; e o notório aumento de casos de covid-19 entre os que mais dependem dos transportes públicos em nada contribui para a confiança no sistema. Porém, é justo reconhecer que têm havido notório empenho na promoção de melhores alternativas nos grandes centros urbanos - onde os passes foram simplificados e radicalmente reduzidos; onde o sistema de transportes tem vindo a ganhar flexibilidade e novas redes; e onde abundam novos sistemas partilhados e a pedido. É neste contexto que a bicicleta se tem vindo a tornar numa alternativa viável, particularmente em Lisboa, seja pela banalização da assistência eléctrica, seja pela criação de percursos seguros e gradualmente conectados, seja ainda pela oferta de um sistema público, que embora com percalços, veio abrir novos caminhos à mobilidade. Para além de dar resposta per si, sendo por regra mais eficiente que qualquer outro modo em trajectos até 5/8km (a maioria dos que ocorrem na cidade) a bicicleta é um excelente complemento ao transporte público, aumentando o seu raio de captação e, consequentemente, a viabilidade dessa alternativa. A bicicleta concilia ainda a salvaguarda de um ambiente, cujo dano esteve na origem da pandemia, com o isolamento social que esta impõe.

Diz-se que andar de bicicleta não está no nosso ADN. Mas além de isto não ser exactamente verdade e de sobejarem exemplos de que os hábitos se alteram, é um mito julgar-se que Copenhaga sempre foi a cidade pedonal e ciclável que é hoje (quando Jan Gehl quis começar a fechar ruas ao trânsito, consideraram-no utópico e disseram-lhe que aquilo não era Itália) ou que a bicicleta sempre foi dominante em Amesterdão (quando este curto vídeo, mostra bem que não). Se é facto que o uso da bicicleta estava mais presente na memória dos povos nórdicos quando foi resgatado, é indesmentível que as nossas condições climatéricas são bem mais favoráveis.

Mas voltemos aos hábitos. Uma das mais flagrantes mudanças ocorridas nos últimos anos é a alteração aos padrões de consumo de tabaco. Qualquer adulto menos jovem se lembra de fazer viagens com alguém a fumar dentro do carro, se recorda que havia quem fumasse até na cama e sabe que fumar dentro de casa era para a sua geração corriqueiro. Tudo isto ainda pode ser feito, sem que nenhuma autoridade nos mace. Porém, desde esses tempos idos, alterou-se a legislação sobre o tabaco, após constatar-se que a liberdade de uns se estava a sobrepor aos direitos de outros. Entre outras coisas, deixou de ser possível fumar em espaços fechados (excepto se altamente ventilados), regra que passou a ditar uma nova normalidade. E, inclusive, uma nova baliza para aquilo que é considerado cordial e civilizado.

Também a publicidade ao tabaco foi banida, perante a evidente perda de vidas humanas e os custos que tal hábito imputava à saúde pública e, portanto, a todos nós. Finalmente, os maços de tabaco viram-se obrigados a cobrir-se de verdades escritas e de imagens que espelhavam as suas dolorosas consequências. Fumar jamais foi proibido; mas foi tornado menos cool, menos confortável e menos apetecível - contrariando os interesses de uma indústria tabaqueira poderosa que, bem ou mal, lá se reinventou. Restrições semelhantes são impostas noutros produtos, como álcool e medicamentos.

Porém, existem hábitos e produtos não menos perniciosos, para os quais a publicidade continua sem restrições. A indústria automóvel, e por vezes a petrolífera, ocupam o espaço publicitário mais nobre em televisões e jornais. E a sua capacidade financeira possibilita anúncios não apenas extensos, mas que se destacam pelos seus espectaculares recursos. Há anos atrás, num consórcio para promoção da mobilidade sustentável onde trabalhei com marcas como a Daimler, Ford, Toyota, Shell, entre outras, um dos fabricantes de automóveis perguntou o que poderiam eles fazer para contribuir para uma mudança de paradigma. Respondi que deixarem de publicitar o automóvel como o sonho de uma família feliz, um marco de ascensão social e um símbolo de liberdade em cidades vazias jamais vistas, ajudaria muito. A resposta pareceu-me óbvia, mas foi, claro, incomodativa por isso mesmo. E depressa nos apressámos a debater outras medidas, que pudessem compatibilizar os interesses da cidade e do sector.

Não cabe, naturalmente, às marcas prescindir de vender uma imagem idílica. E a minha resposta só se justificou porque, naquele contexto, a pergunta havia sido, de algum modo, sincera. Cabe, sim, ao poder político restringir a propaganda de um sector que há 50 anos sabe ser o principal responsável pelo Aquecimento Global - no mínimo, barrando a publicidade dos produtos petrolíferos e dos motores a combustão. Mas não só. Substituir motores a combustão por eléctricos é importante, mas está longe de ser a solução para as cidades. Do mesmo modo que as emissões de poluentes e de CO2 estão longe de ser as únicas consequências do uso, excessivo, do automóvel particular em meio urbano.

Desde logo, porque os impactos ambientais da produção automóvel não passam, por essa via, a ser despicientes (as baterias de lítio não se produzem sem estrago). Mas também porque os problemas de saúde são mais vastos do que os respiratórios e alergias, consequentes da poluição atmosférica - que, por si só, provoca quase 7000 mortes/ano em Portugal - abrangendo questões como obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares e outros, consequentes da sedentariedade; e, claro, stress. Depois, porque a primazia dada ao automóvel nos processos de planeamento, tem restringido a liberdade de peões e de bicicletas, bem como o investimento e a eficiência dos restantes modos de transporte – sustentáveis e acessíveis a todos. E com isto dificulta-se (ainda mais) a vida às classes pobres, aos idosos e aos portadores de deficiência. E sobrecarrega-se o orçamento das famílias, que se esforçam para ter automóvel particular, mesmo quando tal representa um esforço desproporcional (a rondar os 500€/mês em Portugal).

Hoje, a maior parte do espaço público das cidades, mesmo no interior dos bairros, está alocado ao automóvel (estacionado e em movimento), e estudos demonstram que o sentido de comunidade é inversamente proporcional ao volume de tráfego. Este reduz também a autonomia das crianças, que deixaram de ter na rua a extensão natural do seu habitat. Os impactos do isolamento na saúde física e psicológica, em parte resultantes da cidade funcional e dispersa, estão também amplamente demonstrados e traduzem-se mesmo na diminuição da esperança média de vida. Acrescendo, por fim, a questão dos acidentes rodoviários, maioritariamente ocorridos em espaço urbano e que matam 1 milhão 350 mil pessoas/ano no mundo, para além das que ficam incapacitadas para sempre.

Se é certo que hoje existem estudos para quase tudo, é também certo que mesmo os mais cépticos terão muita dificuldade em encontrar algum artigo credível que contradiga tais evidências. E, portanto, trabalhar para o uso racional do automóvel não é uma ideia peregrina dos governos, centrais e locais, mas uma necessidade suportada por toda a evidência científica.

Não se compreende, portanto, que o sector petrolífero e a indústria automóvel - que objectivam a manutenção do status quo e que têm meios para o defender - não vejam legalmente balizada a sua propaganda. Em Inglaterra, o The Guardian tomou a iniciativa (coerente com a sua linha editorial e preocupações ecológicas), de deixar de anunciar companhias petrolíferas. E essa é mais uma razão para no fim de cada notícia solicitar a quem o valoriza que contribua com algum valor. Não haja ilusões: esta é uma medida difícil e que poderá complicar ainda mais a vida aos órgãos de comunicação social. Mas será certamente mais fácil e eficaz se for concertada, transversal e, quem sabe, apoiada – e justifica o debate.

Enquanto este não acontece, as cidades remam contra a maré na promoção de uma mobilidade mais sustentável. Até porque os transportes públicos e a indústria em torno da bicicleta (que, a propósito, exporta 450 milhões de euros/ano, sendo Portugal o 2.º maior produtor da Europa) não têm, compreensivelmente, orçamento para contrapor a indústria automóvel com publicidade sua.

Excepção é o extraordinário anúncio agora lançado pela produtora de bicicletas holandesa VanMoof. Apesar de muitíssimo mais honesto que qualquer anúncio que promova um automóvel a fluir numa cidade vazia, crianças felizes a ir de carro para a escola, e a opção por um veículo hibrido como altruísta, o anúncio da VanMoof foi barrado em França, pela entidade que regula o sector publicitário (ARPP) – e que tem entre os seus associados empresas do sector publicitário, dos media e também marcas, entre elas algumas do sector automóvel. Quando questionado sobre as imagens de acidentes rodoviários, trânsito compacto e chaminés reflectidas num automóvel a derreter, o director de comunicação da empresa, Alfa-Claude Djalo, disse que podia compreender o incómodo, mas que estas imagens não deixavam, por isso, de ser realidade. E concluiu considerando o boicote ao anúncio da marca de bicicletas “inquietante”. Num mundo onde os os lobbies continuam a prevalecer sobre a verdade e o bem-comum temos, de facto, bons motivos para ficar inquietos.

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