Impacto da covid-19 na geopolítica

A pandemia e o colapso económico associado são o maior desafio da Europa. Todavia, agudizou-se a percepção que a Europa tem muito pouca influência na dinâmica internacional.

A pandemia provocada pela covid-19 é um episódio trágico na história da humanidade que marcará as próximas décadas, seja pelo impacto social, seja pelo impacto político ou económico.

O maior desafio é a incerteza por não sabemos bem aquilo em que nos tornaremos – como indivíduos e comunidades. Além do combate à pandemia, importa considerar a resiliência e ousadia necessárias para pensar no que seremos pós-covid-19.

Na crise sanitária de dimensões mundiais identificam-se indícios que novos alinhamentos apontam para possibilidade de aceleração de tendências na geopolítica internacional.

Vivemos hoje num mundo imprevisível, complexo e conflituoso pleno de ganância numa época em que os desafios e a globalização desregulada têm vindo a provocar aumento de conflitualidade num sistema internacional em transição. Neste âmbito, antecipam-se alterações nos equilíbrios geopolíticos e no ambiente de segurança com crescente instabilidade. E testemunhamos a amplificação das fracturas que vão deteriorando a ordem internacional.

O mundo passará a um novo paradigma de globalização mais regulado ou assistimos ao princípio do fim deste modelo? O desequilíbrio e a insustentabilidade do actual modelo de globalização têm vindo a ser evidenciados.

A pandemia terá consequências no quadro macro da geopolítica global, mas antecipá-las continua a ser um desafio. Uma crescente bipolarização entre EUA e China poderá ter contornos de uma nova “guerra-fria”. A tendência é de uma aceleração da competição estratégica pela supremacia do século XXI a vários níveis: económico, modelo social, disputa pela influência sobre outros Estados e regiões, luta pela influência tecnológica e guerras limitadas. Contudo, há o risco de que, após a covid-19, a China continue a reforçar a sua relação com a Rússia - quer afirmar-se como grande potência - e influencie negativamente as democracias.

Por outro lado, poderá ocorrer o agravamento das relações entre EUA e UE - divergências na área da defesa entre os dois blocos -, que terão impacto no relacionamento económico. No entanto, os valores das maiores democracias do mundo exigem que se minimizem as tensões.

As relações da UE com a China também tendem a agravar-se – apesar da UE estar em condições de beneficiar da guerra comercial entre EUA e China -, tendo em conta a necessária reindustrialização da Europa que vai retirar sectores estratégicos à China. A China é um parceiro concorrente e rival sistémico. Neste contexto, importa realçar o novo conceito de glocalização.

O aparecimento de novos actores na cena internacional como a Índia, o Japão, Coreia do Sul e o Brasil, permitiria a alteração da configuração do Conselho de Segurança da ONU que continua a estar paralisado com os vetos cruzados das principais potencias. Durante a pandemia este organismo nem sequer conseguiu aprovar uma simples declaração. E a Organização Mundial de Saúde perdeu eficácia com a decisão dos EUA em retirar a sua contribuição – cerca de 15% do orçamento total – reveladora da tensão entre EUA e China. É uma abordagem muito egoísta em relação ao que está a acontecer no mundo.

A China mantém a tensão com a Índia e não vê com bons olhos o modo como esta se está a relacionar de uma forma cada vez mais próximo com a Austrália e o Japão. E menos ainda da aproximação inédita aos EUA.

No que respeita a Portugal, há também uma janela de oportunidade de protagonismo que tem que ser aproveitada. Temos, porém, duas enormes condicionantes: a nossa posição geográfica – que deve ser potenciada como porta de entrada da Europa - e a quase total dependência de bens essenciais. A sua resolução necessita duma reorganização planeada e encarada como desígnio nacional no âmbito de uma estratégia global do Estado que devia enquadrar o plano de recuperação em preparação pelo governo para receber os fundos europeus.

Numa perspectiva geopolítica, outra implicação possível da pandemia levará muitos Estados a reforçarem os sistemas de saúde e a aumentarem os seus orçamentos nessa área, eventualmente, em detrimento da Defesa. Por isso, a preparação e a resposta face a pandemias passará a ser uma prioridade de segurança nacional. Isto poderá acarretar alterações substanciais na situação estratégica entre potências e em certas regiões, bem como acelerar a deterioração das relações anteriores - como na NATO e nas relações transatlânticas e intra-europeias -, com consequências imprevisíveis.

A pandemia também veio confirmar que o multilateralismo falhou e é repensado, ou então haverá alteração para uma nova ordem mundial.

É a primeira grande crise mundial do pós-II Grande Guerra, cuja resposta não é liderada pelos EUA – de forma inédita - motivada pela mudança radical da política externa de Trump.

Confirma-se que o regime autocrático da China esconde a realidade interna com uma falta de transparência inquietante. Porém, como acusar a China de pretender dominar o mundo após lhe terem permitido que tirasse tanto proveito da globalização e do multilateralismo? Uma pandemia não é hora de divulgar a superioridade do sistema ou abordagem de governança de qualquer país, e muito menos competir pelo domínio global. Em vez de se felicitar por ter recuado a covid-19, a China deveria conquistar silenciosamente a confiança, ajudando os EUA e outros países sem interesse estratégico.

Tendo em conta estes factores, apesar da incerteza e da imprevisibilidade que caracterizam a situação actual, é clara a tendência para que o reordenamento geopolítico mundial seja favorável à China. Numa fase inicial, os passos falhados do regime chinês puseram em causa a posição e a imagem internacional da China. Porém, com as vigorosas medidas que implementou, aparentemente, Pequim começou a controlar a epidemia.

A pandemia e o colapso económico associado são o maior desafio da Europa. Todavia, agudizou-se a percepção que a Europa tem muito pouca influência na dinâmica internacional, pois foi incapaz de ter uma resposta concertada. A única surpresa foi a sua resposta a nível económico com o plano de recuperação (iniciativa franco-alemã).

Desde já, esta crise sanitária veio demonstrar uma verdade insofismável: a de que a UE não pode continuar dependente, quase exclusivamente, da manufactura e da produção industrial, em países terceiros e de outros continentes, de medicamentos e de equipamentos que sejam necessários e indispensáveis a uma área tão sensível como a da saúde.

A UE revelou também continuar a ter falta de coesão e solidariedade no seu projecto de relançamento credível e rentável – única forma de evitar o seu declínio; tal só será possível através da redefinição de competências das instituições, da reindustrialização e a reposição do Mercado Interno com as ajudas que os Estados dos fundos europeus. No entanto, nesta pandemia foram os Estados-membros que tiveram de intervir para apoiar as populações e empresas; esta situação poderá contribuir para aceleração dos nacionalismos e incremento dos populismos.

Há lições que importa reter, nomeadamente a preservação do Estado como garantia de mínimos sociais e regulação e intervenção no mercado; novos conceitos de territorialização e de liberdade; mais e melhor Europa que permitam o seu renascimento minimizando as assimetrias com solidariedade e coesão para evitar o declínio; mudanças no paradigma da globalização em que o processo de interdependência e contínua integração do sistema económico mundial terá um duro teste, onde a reemergência das fronteiras é algo que poderá ser temporário, mas vai afectar a mobilidade mundial; reindustrialização e reconfiguração das cadeias logísticas; descoberta de novas dinâmicas laborais,  como o teletrabalho, ferramentas de videoconferência, entre outras; a transformação digital será incrementada, bem como a transição energética e economia verde.

Os líderes mundiais terão de acabar na prática, e não apenas usando palavras, com o egoísmo nacional e perceber a responsabilidade comum pelo futuro da civilização humana. Será que no mundo se percebeu como é frágil o equilíbrio em que vivemos?

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