Pobre resistência, pobre liberdade

Ou Rita Rato faz prova que leu alguma coisa, que estudou alguma coisa sobre os campos onde Estaline matou milhões de dissidentes, ou designem o Aljube como um museu da renúncia e do relativismo

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Restos do campo de Norilsk, no Ártico, um dos lugares mais letais do Gulag Ilya Naymushin
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Ficha de Helena Neves, que foi jornalista, militante do PCP e deputada do BE, na PIDE Nuno Ferreira Santos

Não é por Rita Rato ser comunista que a sua escolha para dirigir o Museu do Aljube nos afronta. Não ser historiadora, nem museóloga, nem especialista no estudo das resistências às ditaduras contemporâneas também não é motivo para que não possa ser escolhida para essas funções. O que nos afronta na escolha da EGEAC é ver um museu dedicado à “resistência e liberdade” dirigido por uma pessoa que, disse-o em público sem jamais se retractar, nunca “leu nada” nem “estudou” nada sobre o Gulag, por uma ex-deputada que se limita a dizer que apenas “admite” que “essa experiência possa ter acontecido”. O que nos desconforta é ver uma instituição destinada a recordar para a posteridade a violência repressiva do Estado Novo ser gerida por uma pessoa que “não tem de concordar ou discordar” com a violação dos Direitos Humanos elementares, como a liberdade de expressão ou de associação, na República Popular da China.

Bem pode Jerónimo de Sousa ensaiar uma tentativa de vitimização que nada muda. Rita Rato tem todo o direito e liberdade de relativizar o branquear o terror estalinista ou a repressão do Partido Comunista Chinês aos uigures ou aos movimentos democráticos de Hong Kong. Essa liberdade de opinião, ou de culto, se preferirem, não a desaconselha a presidir ao museu do Traje ou de Arte Contemporânea. Nem a liderar outras altas instâncias da administração pública. Ela pode muito bem pensar o que quiser desde que o seu pensamento não corrompa o fim de qualquer instituição que lhe abra as portas.

Haverá quem diga com rigor histórico que, se os comunistas foram as principais vítimas da repressão salazarista, ter uma comunista a dirigir o museu que nos confronta com esse passado heróico e tenebroso pode ser uma reparação histórica. Mas não é verdade. Porque não foram só os comunistas que sofreram a violência da PIDE. Pelo Aljube passaram também muitos democratas que jamais se alinharam com os que, como Rita Rato, consideram que, “apesar dos erros cometidos, não se pode abafar os avanços económicos, sociais, culturais e políticos que existiram na URSS”.

Os museus que fazem a ponte entre o passado, o presente e o futuro não têm de ser liderados por historiadores. Nem sequer por especialistas em museologia. Mas se cada museu tem necessariamente uma identidade, um projecto, uma missão e uma alma, convém que quem os dirige não violente essa identidade, esse projecto, essa missão e essa alma. Rita Rato, pelo que nos chega dessa entrevista nunca desmentida, actualizada ou contestada ao Correio da Manhã não nos poupa a essa violência.

Um museu sobre a resistência dos democratas às ditaduras e ao totalitarismo, um museu que “luta contra a amnésia desculpabilizante”, que homenageia os que em nome da liberdade tiveram uma vida “sempre ameaçada pela perseguição e pela prisão, pela tortura, pelo exílio, pela deportação e quantas vezes pela morte” não pode ser dirigido por alguém que não considere o Gulag uma das páginas mais tenebrosas da história do século XX; um museu sobre a liberdade não pode ser dirigido por quem que tenta suavizar as palavras para descrever o que se passa na China.

Por muito que a EGEAC exalte o projecto de Rita Rato, ainda que não haja dúvidas a colocar sobre o processo da escolha, ainda que sejam de menor importância as críticas corporativas de historiadores e museólogos, há todo este somatório de questões a ensombrar a escolha e ofender os valores que o Aljube pretende valorizar. Ou Rita Rato faz prova que leu alguma coisa, que estudou alguma coisa sobre os campos onde Estaline matou milhões de dissidentes, ou designem o Aljube como um museu da renúncia e do relativismo.

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